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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Truculência nas ruas materializa autoritarismo nada gradual

Thiago Amparo
Advogado, é professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos humanos e discriminação.


Abra o jornal deste domingo (01). Na noite de sábado (30), em Salvador, um homem entrou num bar LGBT e, arrastando uma mulher pelos cabelos, ameaçou de morte a todas pessoas ali presentes, em sua maioria mulheres lésbicas. Foi preso em flagrante, sendo liberado em seguida. Mesmo dia, em São Paulo, nove pessoas em uma festa morreram pisoteadas em Paraisópolis, sadicamente, no que a PM paulista chamou de “ação de controle de distúrbios civis. No Rio de Janeiro, até outubro deste ano, 1.546 pessoas foram mortas pela polícia, maior índice desde o começo da série histórica em 1998.

Spoiler: Bolsonaro não é um democrata. Nunca foi. Não o era quando em 1999 defendeu em entrevista “matar uns 30 mil, começando pelo FHC”, porque afinal “através do voto você não vai mudar nada nesse país”. Não o era quando parte do mercado e Guedes normalizaram seu autoritarismo em nome de reformas econômicas — reformas, aliás, que metade dos outros candidatos ao pleito de 2018 entregaria sem trazer com elas o autoritarismo bolsonarista.

O que nos resta, portanto, é perguntar: por onde entrará o autoritarismo na antessala da democracia brasileira?

Ensaio uma resposta: depende para quem a pergunta é feita. Para aqueles historicamente relegados ao papel de subalternos nesta antessala, o autoritarismo já chegou. Chegou no bar em Salvador. Chegou no baile funk. Para aqueles a quem o privilégio permitiu que se arrogassem o lugar de espectadores da História, o autoritarismo é gradual e lento, e caminha tão devagar quanto a propositura de um projeto de lei.

Para nós — negros, LGBTs, pobres, mulheres e todas as intersecções — deterioração democrática não é gradual, é endêmica.

Gradualismo é o principal esquema intelectual de parte dos progressistas para compreender os tempos atuais. Levitsky e Ziblatt, autores de “Como as Democracias Morrem” nos trazem uma lista útil de indicadores de comportamentos autoritários (entre eles, tolerância ou encorajamento à violência e negação da legitimidade dos oponentes políticos).

Abramovay, em excelente texto para a Revista piauí no último dia 29, faz uso da metáfora de um sapo em água quente. Se colocarmos um sapo em uma água que se esquenta pouco a pouco, ao invés de pular imediatamente, o sapo morre cozido. O “novo autoritarismo vai gradualmente subindo sua temperatura até que a democracia morra calmamente, sem gritos ou baionetas.” Ao passo que a violência cotidiana sofrida por negros, por exemplo, Abramovay chama de “autoritarismo difuso”.

Ora, há algo de espectador nestas análises, embora valiosas sejam.

Não é ou a gradual deterioração da democracia ou a truculência das ruas. Truculência do guarda da esquina se alimenta da deterioração gradual das instituições de controle e das regras jurídicas de uso da força. Falar em dois lados da moeda não pode omitir o fato de estarmos a falar da mesma moeda.

O AI-5 de Paulo Guedes se materializa e retroalimenta da proposta de excludente de ilicitude em operações de GLO defendida por Bolsonaro. Em ambas, institucionaliza-se o autoritarismo visto todos os dias nas periferias deste país, agora aplicada a protestos. Discurso de ódio bolsonarista é parte da mesma moeda que naturaliza as mortes já endêmicas de LGBTs no Brasil. “Das mãos honradas do presidente Costa e Silva, desconfio jamais. Desconfio é do guarda da esquina”, disse o ex-vice-presidente Pedro Aleixo durante reunião em que se assinou o AI-5 em 1968.

Precisamos pensar em um esquema mental que seja mais ambivalente e menos focado em contraditórios. Sem isso, não entenderemos como a truculência do guarda da esquina, para muitos, não é exceção à normalidade democrática gradual, mas a sua própria morte já anunciada. Certa feita, em um debate sobre democracia, levantei números de violência, a que um dos palestrantes retrucou: “eu entendo, mas não precisamos ter ansiedade para resolver todos os problemas do país em tão pouco tempo de democracia”. Precisamos pensar em um esquema mental que revele como truculência nas ruas é engendrada como dispositivo autoritário, nas ruas também no discurso político violento, nas regras de ilicitude, na asfixia de instituições de controle.

Pensar de forma interseccional — nos lembra Patricia Hill Collins em seu livro recém-lançado “Intersectionality as Critical Social Theory” — é como jazz ao vivo. Está tudo misturado e retroalimentando-se. Não existe um Brasil que morre pisoteado e outro que lê sobre autoritarismo pelo jornal. Quer dizer, existem, mas ambos são lados da mesma moeda. A melhor forma de ver o estado da democracia atual é pela convivência ambivalente destes dois mundos. Se direitos humanos são o termômetro da panela onde o sapo está sendo cozido, estes anunciam que o sapo já está cozido há muito tempo.


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