Por Jaime Pinsky
Depois que a Inglaterra se separou de seus vizinhos da Europa, por causa do resultado da votação democrática, órgãos de imprensa entrevistaram pessoas que votaram pela separação, tentando entender os motivos que as moveram. As respostas, frequentemente, não faziam sentido algum, pois não passavam de argumentos ilógicos, frases feitas e suposições sem base, repetindo mantras de políticos conservadores. Muitos eleitores confessaram, sem constrangimento, que não entendiam nada de economia, ou ciência política e que seu voto se dera por conta de promessas de vida melhor se a Inglaterra se afastasse de países gastadores como França e Itália, algo que esses votantes nunca se deram ao trabalho de analisar. Acreditaram também que, com a separação, haveria mais e melhores empregos, uma vez que imigrantes seriam barrados. Enfim, votaram em algo tão importante quanto o Brexit, baseados apenas em afirmações ocas, e não em fatores objetivos e análises racionais.
Isso significa que a democracia não funciona? Analisemos. De fato, quantas pessoas votam em partidos e candidatos que apresentam propostas concretas para melhorar o país? Melhor ainda, o que é melhorar o país? Sim, pode-se dizer que postulantes a certos cargos não deveriam ter determinadas características e deveriam ter outras. Mas não é verdade que, na prática, tendemos a minimizar os defeitos de alguns e hipertrofiamos os defeitos de outros? Não é verdade que votamos fechando os olhos para os pecados daqueles que, antecipadamente, elegemos como sendo os melhores... pelo menos para nós mesmos?
Se é verdade que detentores do poder legislam em causa própria, não é verdade também que a maior parte dos eleitores escolhe com base no que espera, ou imagina, que será melhor para ela, para sua atividade, para seus familiares, para sua igreja, para seu grupo, sem se importar se será o melhor para o país? Será que todos os que criticam o aparelhamento da máquina estatal, se eleitos, vão preencher cargos baseados apenas no mérito das pessoas, e não no interesse de ocupar espaço político?
Não, não é apenas o miserável, aquele que aceita a humilhação de entrar em filas para receber 10 ou 20 reais por dia, não é apenas ele que vai votar por interesse próprio. Com poucas, pouquíssimas exceções, é assim que as pessoas votam em nosso sistema democrático, onde a maioria dos partidos não têm sequer ideologia conhecida, mas têm donos bem conhecidos. Se, apesar do que diz a Constituição, não somos tão iguais perante a lei (alguém ainda tem dúvida sobre isso?) todos são muito parecidos na hora do voto. Na maioria esmagadora dos casos, vota-se por interesse, não por patriotismo ou espírito democrático.
Alguns fingem que organizar abaixo-assinados os torna democratas perfeitos, outros acham que basta vomitar meia dúzia de frases nas redes sociais para se tornar grande democrata. Sinto dizer, mas optar por um número ou outro não é suficiente para promover as alterações que nossa sociedade tropical não conseguiu realizar nos seus primeiros cinco séculos de existência.
Estou pregando o rompimento de nossa jovem democracia? Não. Podem se acalmar os democratas radicais — eu mesmo sou um deles, mas atualmente desconfio até de síndicos de condomínio que lutam pela reeleição. Não estou detonando o sistema vigente, nem a Constituição e muito menos resolvi me aliar a grupos favoráveis ao fim do nosso sistema político. Ao contrário de muitos arrivistas, tenho uma história de luta democrática que inclui a criação de uma revista de ciências sociais em plena ditadura militar. Quando Florestan, Martins e eu criamos Debate & Crítica, não tínhamos medo que a democracia fosse abalada. Ela já não existia e a simples manifestação de ideias, naquela época, podia ser punida com a morte, como ilustra o caso de Vladimir Herzog, assassinado pela repressão, sem que os assassinos tivessem a coragem de reconhecer seu ato.
Mas, hoje, defender a democracia não é suficiente, a não ser que essa atitude seja apenas um ponto de partida para as transformações que o Brasil precisa fazer com urgência. Para pegar o bonde da história? Não, sinto muito, ele passou. Mas para, ao menos, não perder de vista o referido bonde, que está longe, levando outros países.
Todos sabemos que educação é uma das peças-chave, como tem sido em estados nacionais tão diferentes quanto o Japão e a antiga União Soviética, a Coreia e a China, a Finlândia e Israel. Enquanto nessas plagas foram criados projetos distintos, cada um deles adequado à realidade de cada país, por aqui cometemos erros crassos, por incompetência, má fé ou falta de um projeto de Estado.
Senhores candidatos, saibam que abordar pequenos problemas aqui e ali, com o objetivo de garantir apenas uma vitória na próxima eleição, é meta medíocre que não resolve problemas estruturais do país. Ver o país do jeito que está e se conformar com objetivos que não provocarão mudanças reais dá uma terrível sensação de fracasso. Sinto muito.
Tão habituados estamos com o comportamento de muitos servidores públicos, civis e militares, oriundos dos três poderes, que corremos o risco de considerar normal o que é apenas comum.
Legislar em causa própria, criar leis e portarias que não objetivam vantagens senão para si e apaniguados, aumentar o próprio salário, quando poucas remunerações de trabalho conseguem acompanhar a inflação, utilizar informações privilegiadas para comprar e vender (imóveis, ações e até fundos de renda fixa), colocar parentes, seguidores e cupinchas em cargos públicos, utilizando sua força de trabalho para fins privados, tudo isso existe e é comum. Mas, não é normal.
Normalizar, ou até naturalizar o que é apenas comum, habitual, é o primeiro passo para deixar de lado ética e compromisso com a sociedade. Seria ocioso lembrar que funcionários públicos, sejam eles motoristas e contínuos, ou juízes, senadores e professores titulares não têm o direito de abandonar as normas que devem reger todos os membros de uma sociedade, inclusive eles. É o que diz a lei. É o que alega a Constituição.
Quando um servidor público abre mão da ética e passa a agir apenas em benefício de seus familiares, ou de seus partidários; quando ele começa a considerar normal a prática de hábitos tão arraigados no funcionalismo como a “rachadinha”, ou a utilização de informações privilegiadas, ou ainda a utilização do cargo para obtenção de vantagens, o edifício democrático fica abalado.
E aí chegamos à discussão sobre o que é, para nós, o tal Estado Democrático de Direito. É pra valer, ou apenas um rótulo formal? Uma realidade ou uma fachada? Algo como um rótulo conveniente? Rótulo conveniente, sim. Afinal, fica bem brincarmos de democracia. Fica bem fingirmos que aqui todos são iguais perante a lei. Só que, na verdade, não são. Vamos ser claros: um país que permite a fome endêmica de parte substancial de sua população não é um Estado democrático. Um país em que, constitucionalmente, todos gozam dos mesmos direitos, mas apenas os oriundos de determinadas faixas sociais frequentam as prisões por períodos superiores a 30 dias, não é uma democracia. Ou acreditamos que apenas entre os mais pobres e de pele mais escura é que se localizam os inimigos da democracia? Que só entre aqueles que moram na periferia e nos morros, nas invasões e nos acampamentos é que encontramos os que impedem o crescimento de nossa economia e o avanço em bens públicos? Falcatruas com dinheiro público não é coisa de bandidinho pé de chinelo.
O fato é que achamos “normal” que grande parte dos políticos possa beneficiar potenciais eleitores e cabos eleitorais em redutos geográficos, ou setor de atividade, com dinheiro público, mesmo que à custa do esvaziamento de programas fundamentais à saúde pública como “farmácia popular”, que logo não terá verba para a distribuição de remédios contra hipertensão arterial e diabetes, problemas que atingem enorme parcela da população brasileira. Achamos “normal” a redução do salário o esvaziamento social do papel do professor de escola pública, depois que ela se popularizou. Pelo visto, agora, a escola não precisa mais ser tão boa, já que deixou de abrigar os rebentos dos mais ricos, que se transferiram para instituições particulares, preferencialmente bilíngues. Tudo normal, dentro de nossa concepção de Estado Democrático de Direito.
E há mais, muito mais. Muitos de nós achamos suficiente lutar contra a expulsão de gente pobre de áreas de mananciais, ou de parques naturais, onde construíram seus barracos improvisados. É verdade que não se deve compromete trechos de mata virgem e cursos de água necessários ao fornecimento do líquido a cidades. Mas, achamos que pessoas preferem viver ao lado de um córrego poluído, ou só o fazem por falta de alternativa? E qual a alternativa que oferecemos, nós, os arautos da democracia, os organizadores de abaixo assinados? O que fazemos, de fato, pela Democracia, além de apregoar lemas populistas inconsequentes? Claro, conceber e executar um programa sério de assentamento de milhões de pessoas sem teto exige mais do que palavras de ordem berradas por pseudo-democratas com saudade da Guerra Fria... Ou, pior ainda, simplesmente ordenar que os “invasores” sejam ser retirados à bala...
Assim funciona a nossa democracia, onde todos deveriam ser iguais perante a lei, mas não são. É um sistema político que não tem a ver com o discurso igualitário proferido por gente conservadora, transvestida em defensores da igualdade social. É uma democracia construída por meras declarações de intenção, uma democracia formal e não real, uma democracia em que o comum virou normal, em que o normal é isso que está aí, em que os que realmente mandam não querem mudar.