O território da Usina Cambahyba é formado por sete fazendas que somam cerca de 3.500 hectares - Divulgação
Mariana Pitasse
Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) | 03 de Junho de 2021 às 14:45
Na última segunda-feira (31), a Justiça Federal autorizou a desapropriação da Usina Cambahyba, localizada em Campos dos Goytacazes, no norte fluminense. A decisão destina a área ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para assentar famílias camponesas.
O local é alvo de disputa há cerca de 21 anos, a partir de ocupações organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A última delas, batizada de acampamento Luís Maranhão, foi estruturada em 2012 e permaneceu ativa até meados de 2019.
O território da Usina Cambahyba é formado por sete fazendas que somam cerca de 3.500 hectares. Em 1998, a área foi decretada pelo governo federal para fins de reforma agrária. Anos mais tarde, em 2012, o local foi considerado improdutivo pela Justiça. Na época, a área pertencia a Heli Ribeiro Gomes, político fluminense eleito deputado federal em 1958. Hoje o registro do local está em nome da empresa AVM Construções.
Segundo nota do MST, divulgada após a decisão, a “história da Usina Cambahyba expressa a formação da grande propriedade no Brasil”.
“É uma história de violência, mas de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras. Por isso, nós, trabalhadores e trabalhadoras do MST/RJ, não abandonamos nunca a luta pela Cambahyba, porque é nossa história, é nossa resistência, é a nossa capacidade de irresignação diante da injustiça do latifúndio, é pela memória dos lutadores e lutadoras, como Cícero, Neli, Seu Antonio que nos legaram sementes que reafirmamos: a Cambahyba é nossa”, diz trecho do texto.
A decisão que determinou a desapropriação do território foi assinada pela juíza substituta Katherine Ramos Cordeiro, da 1ª Vara Federal de Campos. Nela, a magistrada estabeleceu um prazo de 10 dias para a imissão provisória da posse ao Incra. Cabe recurso da decisão.
História
A Usina Cambahyba tem trajetória entrelaçada com a história recente do país. Estruturada como uma usina de produção de açúcar, o local foi utilizado na ditadura militar para incinerar corpos de presos políticos e opositores do regime.
Em 2014, o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Cláudio Guerra, detalhou em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV) ter incinerado 12 corpos nos fornos da usina, dentre eles, Fernando Santa Cruz e Luís Maranhão, desaparecidos em 1974. A versão já havia sido contada no livro Memórias de uma Guerra Suja escrito por Guerra e lançado em 2011.
Para o advogado, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) e ex-presidente da Comissão Estadual da Verdade (CEV), Wadih Damous, a decisão pela desapropriação do local é muito importante, ainda que seja tardia.
“É uma decisão judicial que reconhece o que aconteceu nos chamados ‘anos de chumbo’. Reconhece que houve brasileiros e militantes mortos e que tiveram seus corpos desaparecidos. Os fornos onde corpos foram queimados foram destruídos pelos proprietários do local, o que mostra como o Brasil é um país de apagamento de rastros. Se hoje a humanidade tem amplo conhecimento do que foi o Holocausto isso se deve à preservação dos campos de concentração. O Brasil não conseguiu fazer isso. Essa decisão é meritória, ainda é tardia”, avalia.
Em reação ao depoimento de Guerra, em 2012, o MST ocupou o local pela segunda vez - uma primeira ocupação já havia sido feita em 2000 com ex-empregados da Usina, que não receberam seus direitos trabalhistas com o encerramento das atividades no local.
Um ano depois, em 2013, Cícero Guedes, militante do MST, foi assassinado na estrada próxima à ocupação. Cícero, que já tinha sido assentado em 2002 no assentamento Zumbi dos Palmares, também localizado em Campos dos Goytacazes, continuava sua militância na luta pela reforma agrária e contribuiu ativamente na ocupação da usina.
Cícero Guedes foi assassinado por três pistoleiros no dia 25 de janeiro de 2013 nos arredores da Usina Cambaíba, em Campos (RJ) / Arquivo MST/RJ
“Nas terras da Cambahyba muitos tombaram na luta pela terra. Dentre eles, Cícero Guedes, grande liderança, que nunca desistiu de lutar pela Cambahyba, pela reforma agrária e por uma sociedade justa, diz a nota do movimento.
Em nenhum momento tínhamos dúvidas de que se tratava de um latifúndio improdutivo marcado pela exploração do trabalho, impactos ambientais e comprometimento com a ditadura empresarial-militar que manchou nossa história”.
Fonte: BdF Rio de Janeiro