Provoca calafrios constatar a terrível coincidência de datas. Apenas dois anos separam, com exatidão, dois assassinatos sob torturas. Em 25 de maio de 2020, utilizando o próprio joelho como garrote vil, o policial norte-americano Derek Chauvin executou extrajudicialmente George Floyd.
No mesmo 25 de maio, Brasil, Sergipe, 2022, policiais criminosos improvisam em sua viatura uma pequena câmara de gás para eliminar Genivaldo de Jesus Santos. Os dois assassinados eram afro-americanos. Um estadunidense, o outro brasileiro. Ninguém sabe se Genivaldo conseguiu repetir aquelas palavras que ainda asfixiam nossa memória: “não consigo respirar”.
O que todos sabem é que a brutalidade filmada nos Estados Unidos gerou uma gigantesca onda de indignação e protestos, que muito contribuíram para a derrota de Trump nas eleições seguintes. Ninguém sabe se no Brasil haverá um repúdio comparável. Ou se, aqui, a sociedade e os poderes públicos assimilarão a banalização do mal, permanecendo indiferentes, inertes e cúmplices.
Também deveria provocar calafrios a constatação de que o assassinato de Sergipe relegou a segundo plano outra tragédia bolsonarista, ocorrida 24 horas antes, na comunidade de Vila Cruzeiro – periferia pobre da mais bela cidade brasileira – ocupada por tropas de assalto que deixaram um rastro de pelo menos 23 mortos. Em ambos os casos, foi chocante a gravíssima atuação da Polícia Rodoviária Federal, uma corporação que, no período anterior ao golpe de 2016, percorria o bom caminho de converter-se numa força eficiente, bem equipada e rigorosa, mas comprometida com o respeito aos Direitos Humanos.
Matéria publicada pelo Brasil de Fato lembra que essa polícia já tinha participado de pelo menos três outros episódios semelhantes, no último período, configurando um escandaloso desvio de função. A Rede Globo lembrou, no Fantástico, que pelo menos 18 outras pessoas já tinham sido vítimas de comportamentos truculentos da PRF.
É um país perigosamente dividido em dois blocos. Aplaudindo essa espiral de violência e a licença para que policiais matem antes de investigar estão os seguidores de um presidente que sonha com uma nova ditadura e reitera sua determinação de não respeitar o voto popular nas próximas eleições. Do outro lado, cresce nas pesquisas a maioria cidadã que busca a melhor saída para que o Brasil volte a se unir sob o manto civilizatório da Carta Magna de 1988.
Na Constituição que Ulysses Guimarães batizou cidadã, a PRF está mencionada unicamente no artigo 144, que reza de forma curta e grossa: “A Polícia Rodoviária Federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Tudo o que fugir desse texto claro e direto não passa de invencionice carregada de tenebrosas intenções.
Por quais obscuras razões os atuais dirigentes dessa Polícia aceitam ou estimulam esse descaminho? Estariam eventualmente engajados no mesmo delírio golpista do presidente? Estariam sendo treinados ou seduzidos para aventuras ditatoriais? Por quais motivos escusos, no início de maio, o chefe da corporação extinguiu as Comissões de Direitos Humanos criadas em cada Superintendência Regional no ano de 2008, provocando imediata interpelação do Ministério Público Federal em Goiás?
Era 21 de dezembro de 2009 e essa homenagem respondia ao meritório engajamento dessa polícia nas operações de combate ao trabalho escravo e também na mobilização nacional para enfrentarr a exploração sexual de crianças e adolescentes, assim como o tráfico de adultos por qualquer outra motivação.
Quem entregou a ele esse prêmio, sob fortes aplausos, foi o ministro da Justiça Tarso Genro. Minutos depois, na categoria Direito à Memória e à Verdade, coube à ministra Dilma Roussef entregar o mesmo prêmio a sua companheira de resistência durante a juventude em Belo Horizonte, Inês Etienne Romeu. Inês foi a única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, onde sofreu torturas brutais, sendo seviciada sexualmente pelos mesmos criminosos que o atual presidente homenageia na figura do Coronel Ustra.
Houve um tempo, não muito distante, em que a presidenta Dilma nomeou corajosamente como Diretora Geral uma certa patrulheira Alice. Primeira mulher a comandar a PRF, Maria Alice Nascimento Souza, também receberia, em 2012, pelos mesmos méritos, o prêmio João Canuto conferido na UFRJ pelo Movimento Humanos Direitos/MHuD. João Canuto foi executado em 1985, com 14 tiros, pelas milícias ruralistas do Pará, quando presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em Rio Maria.
O MHuD é uma entidade que reúne no Rio de Janeiro importantes defensores de Direitos Humanos, como o padre Ricardo Rezende, a quem coube sepultar aquele líder sindical, além de artistas como Wagner Moura, Camila Pitanga, Letícia Sabatella e Dira Paes, que hoje visita nossas casas como a Filó da novela Pantanal.
Se tivermos a curiosidade de retornar a tempos ainda mais distantes, leremos em uma publicação oficial da PRF, comemorativa dos 90 anos de sua existência, que ela foi criada em 1928, quando era presidente Washington Luís, sendo denominada Polícia das Estradas.
Está escrito no livro: “Naquela época as fortes chuvas exigiam uma melhor sinalização e desvio de trechos, inclusive com a utilização de lampiões vermelhos durante a noite”. Em síntese, a PRF nasceu quase 100 anos atrás para defender a vida, eixo mais angular de todos os princípios, leis e tratados sobre Direitos Humanos. Dez anos atrás, estava engajada em corajosas operações relacionadas com a defesa desses direitos e recebia prêmios por isso. Por que razões vêm se transformando, no governo Bolsonaro, em mais um descontrolado mensageiro da morte? Como reverter esse retrocesso?
A resposta só pode ser uma convocação urgentíssima. Mais uma. Dirigida a cada um de nós e a todas as pessoas que estejam presentes nos poderes da República – do município à União -, bem como a todas as organizações, entidades e movimentos populares que compõem a rica sociedade civil brasileira. Nem um dia mais de complacência, letargia, apatia, omissão ou indiferença.
É bem verdade que o calendário nacional reserva para outubro uma oportunidade especial para mudar todo esse clima de violência estimulada. Momento de garantir que as urnas não mais elejam um presidente que faz apologia do ódio, da tortura, do poder superior das armas e da violência. Nunca mais. Mas outubro e janeiro estão ainda longe demais para que nos fosse permitido aguardar, sem reagir com a mesma indignação demonstrada pelo povo norte-americano quando assassinado George Floyd.
Muito menos acreditar que não passam de bravatas e blefes as investidas de Bolsonaro contra as urnas eletrônicas, contra o TSE e contra o próprio Supremo. E que ele acatará de forma dócil e surpreendente a voz das urnas, que fatalmente lhe serão hostis.
Posto que a esperança é uma virtude histórica, política e teologal que deve ser permanentemente cultivada, cabe encerrar esta reflexão com uma justa homenagem aos procuradores federais de Goiás, que divulgaram prontamente uma lapidar Recomendação número 19, de 30/5/2022, para frear esse descontrole institucional: Mariane Guimarães de Mello Oliveira e Marcelo Santiago Wolff.
Empenhados em revogar a Portaria de 3 de maio, pela qual o Diretor Geral da PRF, Silvinei Vasques, havia extinguido as Comissões de Direitos Humanos nas Superintendências Regionais, portaria que viola o princípio da “não regressividade”, constante dos tratados, esses procuradores redigiram uma peça que merece ampla divulgação nacional, com ênfase para o ensino nos cursos de Direito e nas unidades pedagógicas das distintas corporações policiais ou militares.
Em nada menos que 20 considerandos, estão arrolados os textos constitucionais, as leis, convenções internacionais, decretos e portarias vigentes que apontam a necessidade de a PRF manter em seus cursos preparatórios, nos concursos de acesso, nos programas de aperfeiçoamento e no próprio exercício prático de polícia, o conhecimento amplo e a observância estrita dos postulados universais dos direitos humanos.
Os considerandos incluem referências inovadoras que foram edificadas ao longo de décadas, como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, que talvez nem existisse sem o empenho obstinado de defensores como Margarida Genevois e Maria Victoria Benevides, que honram a Comissão Arns de Direitos Humanos como imprescindíveis colegas:
Numa transcrição mais extensa, incorpora também parágrafos normativos das Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública (Portaria Interministerial número 2/2010 Ministério da Justiça e Secretaria de Direitos Humanos), documento que resultou de dois anos de pesquisas, estudos e seminários com distintas corporações policiais de vários estados, sob a coordenação do delegado de Polícia Federal Daniel Lerner, subchefe de Gabinete da SDH, em conjunto com a advogada Isabel Figueiredo, especialista em segurança pública, assessora então do Ministro da Justiça.
Esse documento, passo inicial na construção de um programa nacional de defesa dos direitos humanos de policiais, propunha: “Promover a adequação dos currículos das academias à Matriz Curricular Nacional, assegurando a inclusão de disciplinas voltadas ao ensino e à compreensão do sistema e da política nacional de segurança pública e dos Direitos Humanos”;
“Atualizar permanentemente o ensino de Direitos Humanos nas academias, reforçando nos cursos a compreensão de que os profissionais de segurança pública também são titulares de Direitos Humanos, devem agir como defensores e promotores desses direitos e precisam ser vistos desta forma pela comunidade”; “Direcionar as atividades de formação no sentido de consolidar a compreensão de que a atuação do profissional de segurança pública orientada por padrões internacionais de respeito aos Direitos Humanos não dificulta, nem enfraquece a atividade das instituições de segurança pública, mas confere-lhes credibilidade, respeito social e eficiência superior”.
Paulo Vannuchi é integrante da Comissão Arns, jornalista, foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos