O deputado Daniel Silveira (PSL - RJ) - Michel Jesus/Câmara dos Deputados
Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Publicado na Folha de São Paulo 22.fev.2021
Em 28 de abril de 1987, em seu discurso na Assembleia Constituinte, Lélia Gonzalez afirma categoricamente: “Nós não estamos aqui brincando de fazer Constituição”. Nós não estamos aqui brincando de fazer uma democracia --ou estamos? Democracia não é um slogan, é uma luta constante. Hoje, com os egos inflados por conta da justa, embora atabalhoada, responsabilização do deputado Daniel Silveira, nem parece que o Congresso e o STF têm deixado a banda antidemocrática passar quando sua própria autoproteção institucional não está em jogo.
Não parece, mas têm deixado. Seria apenas inconstitucional, se trágico já não fosse, o fato de o STF utilizar um instrumento da ditadura, a Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1983, para coibir apologia à ditadura. Fazê-lo é sintomático de um país que se chama de democrático, mas convive sem grandes crises existenciais com o autoritarismo nada gradual dos guardas da esquina contra a carne mais barata do mercado, a negra.
A LSN de 1983 carrega o DNA repressivo das leis e decretos anteriores, de 1969, 1967 e 1935, e cabe ao STF declará-la inconstitucional. Como a pesquisa de 2018 de Laura Kirsztajn evidencia, embora alguns ministros do STF como Barroso e Lewandowski já tenham criticado a LSN de 1983, a sua constitucionalidade nunca foi enfrentada de forma central pelo STF. OAB ensaia questionar a lei na corte, mas por ora nada.
Enquanto o STF deixar o Ministério da Defesa celebrar o aniversário de golpe militar, como fez o ministro Toffoli em decisão de maio de 2020, para quem cabe aos historiadores e não ao Judiciário dizer o que é golpe e o que é ditadura, a banda antidemocrática passa ilesa. Quando o STF decidiu em setembro de 2018 rejeitar denúncia de discurso de ódio contra o então candidato Jair Bolsonaro porque ele não chegara a defender a “eliminação” (leia-se genocídio) da população negra, apenas a sua inferioridade, a banda antidemocrática passou tão ilesa que ganhou as eleições.
Passa a banda da ditadura quando o Congresso não é célere na punição disciplinar a parlamentares golpistas. O caso de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) no Conselho de Ética da Câmara desde dezembro de 2019 por defender o AI-5 não andou desde então. Enquanto os parlamentares não substituírem a LSN por uma lei que assegure, de maneira democrática, a proteção ao estado de direito, a banda dos ministros de Justiça que qualificam jornalistas como ameaça à segurança nacional passará ilesa.
O que nos falta mesmo é justiça de transição. Nos falta levar a sério as 29 recomendações da Comissão Nacional da Verdade, 80% delas ainda não cumpridas no todo ou em parte. Nos falta parar de defender irrestritamente a Lei da Anistia, como faz esta Folha e o STF, impedindo que processemos crimes de lesa humanidade como tortura, a despeito de condenações internacionais contra o Brasil e da prática de nossos vizinhos como Argentina. Processar torturadores não é sequer um tema jurídico controverso como nos fazem querer crer as cortes brasileiras.
Nos faltam museus como o da Memória no Chile, para levar às gerações futuras a verdade sobre os horrores da ditadura. Nos falta controle civil sobre militares, inclusive PMs, cuja militarização não fora inventada pela ditadura, mas suas atrocidade foi por ela acirrada. Nos falta proibir apologia à ditadura por lei, senão continuará a passar a banda de elogios por parte do nosso presidente da República a ditadores como o paraguaio Stroessner, pedófilo em série, e o chileno Pinochet, torturador contumaz. Bolsonaro os elogiou, e passou ilesa a banda.
Enquanto as instituições respiram aliviadas que Daniel Silveira está preso, ignoramos outros Daniéis Silveiras sentados à cadeira presidencial, no Congresso e à espreita nas esquinas. O que nos falta mesmo é não brincar com a democracia.