*Texto originalmente publicado na Folha de SP. com autoria de: Belisário dos Santos Jr., Paulo Abrão, Pedro Dallari e Sirlene Assis.
Dentre as políticas públicas atacadas por Jair Bolsonaro, aquelas relacionadas aos direitos à memória, verdade, justiça e reparação foram particularmente atingidas. De forma emblemática, uma das últimas medidas de seu governo foi a extinção da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída pela lei 9.140/95.
Órgão de Estado criado por Fernando Henrique Cardoso, a comissão tem como missão reconhecer os mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar, bem como envidar esforços para a localização dos corpos de desaparecidos. É patente, assim, a ilegalidade da extinção do órgão, uma vez que ele está longe de cumprir seu objetivo legal.
Essa ilegalidade foi reconhecida pelo atual governo por meio de reiteradas declarações de seus membros, que se comprometeram publicamente com a reinstalação da CEMDP. Honrando o compromisso, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania produziu uma minuta de decreto sobre o tema e a enviou à Casa Civil, onde, no entanto, o processo encontra-se parado desde abril, como já noticiado por esta Folha em 15 de agosto.
O atual ciclo político pode representar uma última oportunidade para o cumprimento de algumas das obrigações internacionais do Estado brasileiro em relação às graves violações de direitos humanos da ditadura militar. Muitos dos familiares de vítimas estão nos deixando sem que tenham as respostas pelas quais lutaram por décadas. Assim, cada dia de atraso na reconstituição da CEMDP é grave.
Mas a reinstalação da CEMDP não responde apenas à necessidade de saldar os passivos da transição democrática. O órgão pode desempenhar papel estratégico em agendas do presente, com as quais o governo também tem se mostrado comprometido.
Por um lado, ao atuar no fortalecimento da democracia. O número oficial de 434 mortos e desaparecidos políticos está longe de representar a totalidade de vítimas do regime. Temos uma enorme lacuna no reconhecimento público das violências perpetradas pela ditadura contra os camponeses, os povos indígenas e a população negra. Ampliar o conhecimento sobre a extensão da violência ditatorial, incorporando os recortes de gênero, raça, classe, território e orientação sexual é fundamental para que se constitua uma consciência crítica acerca dos riscos do autoritarismo.
Por outro lado, o órgão reúne uma importante expertise técnica, especialmente no campo da antropologia e da arqueologia forenses, que pode ser colocada à disposição para o esclarecimento dos crimes do Estado de outros períodos históricos, inclusive os que são perpetrados hoje.
Como se vê, a CEMDP tem ainda muitos papeis a cumprir na defesa da democracia e na luta contra toda forma de autoritarismo e violência, do passado e do presente. Por isso, entendemos ser urgente que o atual governo federal cumpra definitivamente esse compromisso já assumido com a sociedade brasileira, com os familiares das vítimas e com os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos.