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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   O Brasil voltou à época dos mortos e desaparecidos políticos

Quem mandou matar Dom Phillips e Bruno Pereira? O jornalista inglês e o indigenista brasileiro estão entre os muitos mortos e desaparecidos políticos do Brasil. Sim, políticos. Foram assassinados em razão do trabalho que exerciam, um ativismo essencialmente político, e sua morte é, em si, resultado de uma política de morte e desaparecimento, uma política do medo, orquestrada para difundir o terror. O terror como método, adotado com a finalidade de coibir toda forma de oposição e tirar do caminho aqueles que atrapalham.

Colunistas do UOL

Dom e Bruno atrapalhavam. Poucos e pequenos diante da força do garimpo ilegal, do tráfico, das madeireiras clandestinas, do capital que avança sobre a fronteira agrícola da Amazônia, do agro que é torpe antes de ser pop, Dom e Bruno estavam do lado certo da lei e da História. Por isso, incomodavam.

Esse inglês era malvisto na região, afirmou Jair Bolsonaro em entrevista a Leda Nagle na manhã de quarta-feira (15/6). Como tem sido hábito nos pronunciamentos do presidente, seguiu-se uma série de frases com o objetivo de afastar qualquer responsabilidade, mesmo que indireta, pelo desaparecimento da dupla.

Referindo-se ora a Dom Phillips e ora aos dois, Bolsonaro se esmera em argumentar que a culpa do desaparecimento é - adivinha? - das vítimas: Resolveram entrar numa área completamente inóspita. Ele tinha que ter mais que redobrada atenção para consigo próprio e resolveu fazer uma excursão. É muito temerário você andar naquela região sem estar devidamente preparado fisicamente e com armamento devidamente autorizado pela Funai.

Em tudo aquilo em que se vê implicado ou em que há suspeita de envolvimento daqueles que lhes são caros, Bolsonaro se esquiva de responsabilidade, de si e dos seus. E toca a culpar a saia curta da garota pelo estupro sofrido.

Na semana passada, dois dias após o desaparecimento de Dom e Bruno, o presidente havia se manifestado de forma semelhante em entrevista ao SBT, quando qualificou a expedição da dupla como uma aventura que não é recomendável.

Sua postura guarda semelhanças com declarações emanadas pelos generais que comandaram o país no período mais truculento da ditadura militar e seus colaboradores. Em maio de 1970, por exemplo, uma nota divulgada pela Presidência da República afirmava: Não há tortura em nossas prisões. Também não há presos políticos. As denúncias das violações praticadas no governo Médici começavam a correr o mundo, mas, segundo a nota, não passavam de intriga para gerar discórdia entre nações democráticas. Provêm, inequivocamente, de grupos esquerdistas, dizia o texto.

Terrorismo de Estado cada vez menos sutil

No Brasil, o terrorismo de Estado é cada vez menos sutil. A tortura e a morte ocorrem à luz do dia, praticadas por agentes do Estado, aniquilando cidadãos sob custódia. Foi isso o que aconteceu três semanas atrás, em Sergipe, quando um homem foi torturado até a morte no porta-malas de uma viatura policial. Convém não esquecer. Convém lembrar, quantas vezes for preciso.

Policial rodoviário é agente do Estado. Asfixiar deliberadamente um cidadão numa câmera de gás improvisada é tortura. Foi uma fatalidade, um acidente? Não. Foi uma morte presumida, uma execução, feita por servidores públicos que obedecem a hierarquia, seguem orientações e têm a função de zelar pela segurança de todos.

No episódio que Bolsonaro chamou de aventura, a morte, até onde se sabe, não foi praticada por agentes do Estado, mas por outra classe de criminosos. Criminosos que têm sido empoderados pelo governo, sobretudo pelo presidente da República. (Esse inglês) fazia muita matéria contra garimpeiros, questão ambiental, então, naquela região lá, que é bastante isolada, muita gente não gostava dele, declarou.

Discursos nunca são inócuos. Quem difunde desumanidade semeia desumanidade. Quem dedica sua vida e sua voz à banalização do mal não pode estimular outra coisa que não a banalização do mal.

Decretos e pronunciamentos que afagam garimpeiros, a perseguição a ONGs e a lideranças ambientais, a discriminação dos povos indígenas e de qualquer tipo de ativismo - botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil foi uma das promessas de campanha de Bolsonaro -, tudo isso estimula a violência mais hedionda e funciona como salvo-conduto, garantia de impunidade.

Remanescentes ósseos supostamente de Dom e Bruno foram enviados para perícia e identificação. Talvez nunca sejam localizados ou identificados. No Brasil, cerca de 80 mil pessoas desaparecem a cada ano. Sequestros jamais solucionados, tráfico de crianças, mortes acidentais, execuções. Parte desse universo compreende o que o direito internacional convencionou chamar de desaparecimento forçado. Todos aqueles que não sumiram por livre e espontânea vontade são vítimas de desaparecimento forçado. Alguns são vítimas do desaparecimento administrativo: somem na burocracia, como os indigentes sepultados sem identificação e os corpos não reclamados, que são enterrados sem que nenhum familiar tome conhecimento de sua morte.

Entulho da ditadura militar

No Brasil, os mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar, entendidos como aqueles que morreram ou desapareceram (ou morreram e desapareceram) em razão da militância política, somam 434 pessoas segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Esse é o número das vítimas que foram procuradas por suas famílias, defendidas por comissões ou organizações, e que tinham, ou viriam a ter, notória atuação política. O número real de vítimas fatais da ditadura é muito maior. Segundo a própria CNV, foram pelo menos 1.800 trabalhadores rurais e 8.000 indígenas somente nas dez etnias pesquisadas.

Apenas na vala de Perus, uma cova clandestina descoberta em 1990 num cemitério municipal de São Paulo, foram encontrados 1.049 sacos com ossos humanos. Essas ossadas foram deliberadamente ocultadas num buraco cavado na terra a mando de uma autoridade municipal em 1976, para que não fossem encontradas. Estima-se que vinte delas sejam de opositores da ditadura mortos sob tortura ou eliminados a tiro pela repressão entre 1971 e 1974, número que pode chegar a quarenta.

Mais de mil, portanto, são de pessoas que não tinham nenhuma militância política e, mesmo assim, foram desaparecidas, grande parte delas eliminadas pela ROTA, pela Polícia Militar ou por grupos de extermínio que atuavam nas periferias com as bênçãos dos militares aboletados nos governos, como a Scuderie Le Cocq e o Esquadrão da Morte, instituições que matavam com o aval de um Estado mobilizado em torno de uma agenda de Segurança Nacional e dedicado a eliminar o inimigo interno. São ou não são desaparecidos políticos?

Dom Phillips e Bruno Pereira foram igualmente alçados à condição de inimigos internos por um governo perverso e autocrático, determinado a abater ou criminalizar indígenas e indigenistas, o meio ambiente e os ambientalistas, o jornalismo profissional e os jornalistas: todos aqueles que se opõem à necropolítica que Bolsonaro promove.

Considerando verdadeira a confissão do pescador Amarildo da Costa Oliveira, que teria afirmado à Polícia Federal que esquartejou e enterrou os corpos de Dom e Bruno, é justo que ambos sejam contabilizados entre os mortos e desaparecidos políticos dos tempos atuais. Como Marielle Franco. Como Genivaldo.

Não foi apenas a inflação de dois dígitos que a Era Bolsonaro trouxe de volta, tampouco a fome que acomete mais de 15% da população, o arrocho salarial, a renda mais baixa dos últimos dez anos ou o desmatamento recorde. Vivemos novamente tempos de ameaça institucional, do medo como política de Estado. O recado é elementar e pedagógico: não se metam onde não são chamados, não façam nenhuma aventura. Se fizerem, vão virar estatística. E, se acontecer, o que eu posso fazer? Não sou coveiro!

Comissão de Mortos e Desaparecidos em risco

Não é mera coincidência que, neste mesmo mês de junho, o governo Bolsonaro esteja empenhado em extinguir a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Criada em 1995 por Fernando Henrique Cardoso como instrumento de justiça de transição dedicado à busca de corpos, à análise de pedidos de indenização e à revisão de assentos de óbito, a CEMDP é subordinada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e presidida desde 2019 pelo advogado Marco Vinícius Pereira de Carvalho, entusiasta da ditadura (antes de assumir, ele usou as redes sociais para defender a comemoração do dia 31 de março, aniversário do golpe de 1964).

Passados três anos, Carvalho pretende colocar em votação no próximo dia 28 a extinção do colegiado. Segundo ele, a Comissão já cumpriu seus objetivos e novos pedidos de busca de corpos ou de indenização não serão aceitos, em razão de um suposto prazo legal que já teria sido superado, conforme informado com exclusividade na coluna de Marcelo Godoy na segunda-feira (13/6). A intenção foi confirmada ao jornal O Globo.

Num país onde quase 60 mortos na Guerrilha do Araguaia permanecem desaparecidos há 50 anos, onde apenas cinco das 1.049 ossadas encontradas na vala de Perus foram identificadas (passados mais de 30 anos de sua descoberta), onde a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro a envidar todos os esforços necessários à localização dos desaparecidos políticos até que todas as possibilidades esgotadas, propor a extinção da Comissão neste momento chega a ser um escárnio.

O Estado brasileiro ainda não localizou os desaparecidos da ditadura militar e logo precisará criar uma comissão para buscar os desaparecidos do atual governo.

Quem mandou matar Dom e Bruno?

Fonte: Camilo Vannuchi Colunista do UOL


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