por Thiago Haruo
XII Encontro Anual da Rede Latino-Americana e Caribenha de Lugares de Memória (RESLAC)
Entre os dias 22 a 24 de novembro, São Paulo recebeu o XII Encontro Anual da Rede Latino-Americana e Caribenha de Lugares de Memória (RESLAC). A RESLAC congrega diversas instituições do continente e do Caribe, que têm como objetivo a recuperação e a construção de memórias coletivas, vinculadas às graves violações de direitos humanos e as resistências que as acompanharam. O Museu da Imigração compõe essa rede e foi sede para o último dia deste encontro de âmbito regional [1].
Mas por que o Museu da Imigração compõe esta rede? O que significa olhar para o seu patrimônio assumindo-o como um lugar de memória? Neste texto, abordaremos tais questões recordando algumas exposições e pesquisas já realizadas, além de mencionar algumas possibilidades abertas por este tipo de abordagem. Primeiro, porém, faremos uma breve introdução do que é a RESLAC e seus principais valores.
A Rede Latino-Americana e Caribenha de Lugares de Memória (RESLAC)
A RESLAC se constituiu em 2005, a partir da crescente mobilização da sociedade civil em diversos países, demandando o esclarecimento das violações perpetradas durante as últimas ditaduras militares. Também exigem a responsabilização por esses atos, a punição dos perpetradores, e a construção de uma política de memória sobre esse período [2]. Ocupando espaços anteriormente utilizados pela repressão, foram surgindo museus, monumentos comemorativos, lugares históricos e parques públicos, geridos a partir do comprometimento com a memória, para que nunca mais se repitam as violações ali cometidas. Dessa prática, surge a ideia de lugares de memória, que:
Interpretam a história através do lugar
Envolvem o público para que estimulem o diálogo sobre problemas sociais atuais
Abrem oportunidades para a participação cidadã e a ação positiva da sociedade sobre os problemas que o lugar representa
Promovem a justiça e a cultura universal dos direitos humanos
A RESLAC é composta por 40 instituições de 12 países, que por sua vez também fazem parte da Coalização Internacional de Lugares de Consciência [3]. No Brasil, além do Museu da Imigração, fazem parte dessa rede o Memorial da Resistência, o Núcleo de Memória, a Casa do Povo e a Casa das Ligas e Lutas Camponesas de Sapé.
Então quais seriam as ações do Museu da Imigração que refletem esses valores? Para responder a tal questão, é necessário olhar para a história do edifício no qual o Museu está inserido.
A hospedaria do Brás enquanto lugar de acolhida
A exposição Hospedaria 130 (do ano de 2017), realizada no Museu da Imigração em comemoração aos 130 anos de fundação da Hospedaria do Brás, mostrou não somente o funcionamento da acolhida dada aos imigrantes recém-chegados, mas também se ateve aos aspectos cotidianos daquela instituição. No processo de pesquisa para a mostra, foi possível entender que a Hospedaria era antes de tudo um espaço de regras, que deveriam ser seguidas rigorosamente por pessoas de culturas diversas, recém-chegadas, e com necessidades variadas. Interpretando e citando o documento da Assembleia Geral da Colônia Italiana de 1888, a exposição estabelecia:
Logo após a abertura da Hospedaria, suas regras já eram confrontadas. Migrantes italianos organizam uma Assembleia Geral Extraordinária. “Vexatório” é o termo utilizado para denunciar o “atentado a todos os direitos da liberdade individual”. A colônia italiana reivindica seus direitos: Liberdade de ir e vir e garantia de pagamentos pelos serviços prestados [4].
Aqui se expressa uma das contradições da Hospedaria: apesar de ter como razão própria de ser o fenômeno do deslocamento humano, a instituição lançava mão de dispositivos de controle no que diz respeito a circulação daquelas pessoas quando em território nacional. Nos relatórios, encontramos a urgência em finalizar os muros do edifício dos gerentes daquele espaço para assegurar a reclusão desses imigrantes quando necessário. As famosas “quarentenas”, dessa maneira, se revelam enquanto exemplos dramáticos desses mecanismos de controle e disciplinamento. No jornal Correio Paulistano (SP) de 1897, encontramos a notícia da prisão de Victorio Pisaceri, que liderava um movimento de imigrantes de dentro da Hospedaria, onde haviam sido trancados por “medida sanitária”. A notícia ainda dá conta de que a polícia foi rapidamente acionada e a “ordem reestabelecida”.
Nesta curta incursão de materiais da época levantados na exposição, é possível notar os mecanismos de controle e disciplinamento ao qual as e os imigrantes eram submetidos. A própria concentração de mais de 3 mil a 10 mil pessoas em um mesmo espaço indica o caráter disciplinador daquela instituição. Considerados desde o Estado enquanto força de trabalho, tinham nos momentos críticos seu direito de ir e vir suspendidos, o direito à saúde garantidos até onde eram considerados úteis como força de trabalho e seus direitos políticos interditados.
A hospedaria do Brás enquanto lugar de apagamento
Um ano após a inauguração da Hospedaria do Brás, foi sancionada no Brasil a abolição da escravatura. Durante os mais de 300 anos que antecederam essa data, desembarcaram no nosso país cerca de 4,8 milhões de pessoas escravizadas vindas do continente africano [5], em um sistemático projeto de negação da humanidade dessas pessoas, imprimindo em nossa sociedade estruturas que se reproduziriam mesmo após o fim do regime escravista.
Engajados na construção de uma nova república, moderna, uma parte importante das elites da época viam nos negros libertos e seus descendentes o reflexo do passado escravista, um índice do nosso próprio atraso enquanto nação moderna. Informados por teorias racistas, viam na imigração europeia branca uma via para o “melhoramento das raças” no Brasil. A Hospedaria do Brás, dessa maneira, compôs o que posteriormente seria conhecido como projeto de embranquecimento da população brasileira.
No Museu da Imigração, esse tema foi retomado este ano no contexto do Programa de Residência Artística, na atividade “A casa tomada: a onda negra e o medo branco nas causas da imigração”, realizada na instalação da artista Emília Estrada com a participação de Marcio Farias, pesquisador e trabalhador do Museu Afro-Brasil. Em meio aos móveis e bustos que compõe o acervo do Museu da Imigração, debatemos a recorrência na história da sociedade brasileira de negar-se a rever seus próprios traumas, dentre eles, as consequências do regime escravocrata e seus desdobramentos.
FOTO RODA NA ATIVAÇÃO
Segundo Farias, a primeira parte do nome do evento “A Casa Tomada” fazia referência a um conto do escritor argentino Júlio Cortazar, em que num tom onírico conta a história de dois irmãos que vivem numa casa a sós, e que, aos poucos, vão percebendo ruídos entremeados pelo silêncio costumeiro. O conto avança e o diálogo passivo das personagens frente a pavorosa presença pressentida pelos sons emitidos na casa aguça mais o caráter angustiante experimentado no texto.
A metáfora que dialoga com o próprio mobiliário espalhado instalação artística é complementada pela hipótese histórica lançada na segunda parte do título “a onda negra e o medo branco nas causas da imigração”. Segundo Farias, a decisão de fomentar a imigração europeia teve como causa também a interpretação das elites da época dos problemas que poderiam acarretar a crescente mobilização política dos afrodescendentes que lutaram pelo fim do regime escravista. Assim, antes que tivessem a “casa tomada”, então, estes teriam tratado de introduzir no país a força de trabalho imigrante, neutralizando essa massa de trabalhadores disponíveis no território nacional. A máquina de racialização que opera no país teria na Hospedaria um de seus dispositivos constitutivos [6]. Desse ponto de vista, abre-se uma importante perspectiva de explorar a história da Hospedaria do Brás como parte desse plano sistemático de apagamento da contribuição do negro no Brasil.
As prisões políticas no edifício da antiga Hospedaria do Brás
Em pelo menos duas ocasiões a antiga Hospedaria do Brás foi utilizada como presidio: na Revolução de 1924 e após a ordem de abandono do litoral dos chamados “súditos do Eixo” em 1943 [7].
Revolução de 1924
Em julho de 1924, oficiais rebeldes do Exército tomaram diversos pontos militares da cidade naquele episódio que ficou conhecido como a Revolução de 1924. O acontecimento é considerado o segundo momento do “tenentismo”, movimentação nas camadas baixas e médias das forças armadas, irrompido em 1922 na Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. No evento de 1924, São Paulo foi tomada durante 23 dias por bombardeios, resultando em 503 mortos e 4.846 feridos segundo um balanço da prefeitura na época [8].
Mais uma vez, é na exposição “Hospedaria 130” (2017) que vamos encontrar uma referência ao que aconteceu com o edifício naquele momento:
(...) Após a Revolução de 1924, opositores do regime foram mantidos presos aqui, onde também aconteceram os julgamentos. Há uma fotografia desse período que registra uma teresa (corda improvisada feita com lençóis amarrados) presa a um beliche, que havia sido usada para fuga.
Pesquisas sobre a época dão conta de que a Mooca figurou dentre os bairros mais atingidos pelos bombardeios, estando muitos imigrantes dentre os rebeldes [9]. Outros relatos mencionam ainda a Hospedaria como lugar de refúgio para alunos de uma escola. O fato é que, até onde sabemos, esta seria a primeira vez que ocorreria uma radical modificação nas funções para as quais o edifício tinha sido projetado.
Prisões de 1943
Desde 1937, o Brasil vivia sob o regime ditatorial do Estado Novo. Em 1942, o regime getulista havia declarado guerra aos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e se intensificou a perseguição já bastante truculenta aos imigrantes com origem nesses países. No dia 8 de julho de 1943, então, 5 navios cargueiros que partiram do porto Santos foram afundados por submarinos. Frente ao ataque, rapidamente o regime reagiu enquadrando a população imigrante residente no litoral, acusando-a de espionagem.
A decisão então foi de que aqueles imigrantes de nacionalidade alemã e japonesa deveriam evacuar o litoral em no máximo 24 horas. No caso dos imigrantes japoneses, por exemplo, 1.500 pessoas tiveram que abandonar imediatamente suas casas e trabalhos, para serem direcionadas ao interior do país. Naquele mesmo ano, a antiga Hospedaria do Brás havia sido transformada em Escola Técnica de Aviação, que funcionaria no edifício até 1953. Nesse contexto, então, foram presos na antiga Hospedaria do Brás, os chamados “súditos do Eixo”, sendo fixados e levados para as cidades do interior.
Museu da Imigração enquanto um lugar de memória
A história de acolhida na Hospedaria do Brás mostra que aquele espaço era antes de tudo um lugar de regras, em que os imigrantes eram passiveis de controle e disciplinamento. Os muros da instituição demarcavam o espaço, onde a população acolhida podia ser gerida, ao mesmo tempo em que muitos dos direitos fundamentais eram violados. Por outro lado, ampliando um pouco mais o olhar, indo para além desses muros, é possível notar que a Hospedaria formava, juntamente com outras instituições e atores, a política de embranquecimento racial engendrada em nível nacional. Esse olhar abre possibilidades interpretativas muitas vezes ignoradas para esse patrimônio, contextualizando-o numa política que negou sistematicamente o status de humanidade da maior parte da população brasileira.
Por fim, os eventos de 1924 e 1943 mostram momentos em que os muros da Hospedaria serviram não somente ao disciplinamento de imigrantes, mas também de presos políticos. Se no episódio de 1924, o edifício localizado num bairro operário arrasado por bombardeios passou a disciplinar os “rebeldes”; em 1943, esses mesmos muros foram utilizados para vigilar os “súditos do eixo”. O que se ressalta dessa história a partir da perspectiva dos lugares de memória é o fato de que, historicamente no Brasil, os direitos fundamentais dos imigrantes foram vistos com ressalva, estando essa figura muito próxima, a depender da conjuntura, da figura do “inimigo”.
Como visto até aqui, patrimônio que compõe o Museu da Imigração atravessou por diferentes momentos históricos, conjunturas políticas e projetos de nação. Ao propor um olhar desses diferentes momentos a partir da história do lugar – que é material, geográfico, político e social, buscando entender as dinâmicas e os mecanismos pelos quais foram perpetradas violações contra direitos fundamentais, a perspectiva dos lugares de memória se mostra de fundamental importância para que essas violações não se repitam.
Ver o resumo das discussões realizadas durante o encontro no site do Núcleo de Memória: https://www.nucleomemoria.com.br/atividades-nucleo-memoria/xii-encontro-anual-da-rede-latino-americana-e-caribenha-de-lugares-de-memoria(270).
Há uma diversidade de situações e desdobramentos desses aspectos quando consideramos os países latino-americanos e caribenhos. No Brasil, por exemplo, logrou-se apenas esclarecer procedimentos de tortura, assassinatos e desaparições. Já na Argentina, não só houve esclarecimento dos fatos ocorridos como se levou a cabo o julgamento e punição dos perpetradores.
Exposição Hospedaria 130, Museu da Imigração, 2017.
Entendemos por “máquina de racialização” diversos dispositivos - materiais e simbólicos - que operam na construção das diferenças, hierarquizações, separações e classificações a partir de características fenotípicas dos sujeitos.
O pesquisador Odair da Cruz Paiva menciona também que em 1932, durante o movimento constitucionalista, a antiga hospedaria funcionou como um presídio político que encarcerava os getulistas. Infelizmente, por não encontrar documentos ou outras fontes que indicassem esse evento, decidimos não apresenta-lo no corpo do texto.
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão. Uma história de São Paulo, das origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, 417 p.
ROMANI, Carlo. Antecipando a Era Vargas: a revolução paulista de 1924 e a efetivação de práticas de controle político e social. Topoi, v. 12, n. 23, p. 166-167, 2011.