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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Múltiplos espancamentos de Moïse

O congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, que foi assassinado na segunda-feira, 24, em um quiosque na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro - Facebook/Reprodução

Com quantos espancamentos se faz um país brutal? Há o espancamento literal. Ali, onde jaz o corpo do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, inconsciente, atado, negro e africano; morto pela brutalidade sanguinária de seus algozes; incapazes de ver as semelhanças entre suas peles escuras. O fato de podermos chamar o episódio de racismo xenófobo confunde quem, erroneamente, entende raça como identidade individualizada, não como sistema de poder que precifica a zero a carne congolesa.

Há, ainda mais, o espancamento de um mito nacional: jaz ali junto ao corpo de Moïse o mito de um país receptivo —como se 6.000 mortos pelo Estado por ano já não tivessem deixado isso evidente. A gente chegou aqui e os brasileiros sempre foram pessoas boas. Mas, hoje, não sei mais, relatou a mãe de Moïse.

Buarque de Holanda estava certo quando nos alertou que a cordialidade brasileira não significa ser bom, mas sim reger-se pelo coração, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. O homem cruelmente cordial, assim, é o miliciano: é no matar a sangue frio um desafeto que jaz desfalecida a esperança de uma democracia que respeite as leis.

Há o espancamento de qualquer ideia de público. Onde estão as condolências pela Presidência da República, mesmo sendo o seu atual ocupante delas indigno? Damares já enviou o Ministério de Direitos Humanos? Governador do RJ já foi à TV? Onde esconderam o espancamento por uma semana? A Polícia Civil isolou a cena do crime? A PM está ali só para proteger o quiosque? Colunistas brancos já deixaram de ironizar a barbárie do alto de suas poltronas estofadas ou permanecem míopes sobre sua própria pequenez?

É preciso um país inteiro apático para que o corpo caído no chão não pese em nossos ombros. Ou saímos às ruas neste sábado (5) e botamos fogo nos espancamentos que normalizamos ou deveras, como escrevera Drummond, chegou um tempo em que não se diz mais: Meu Deus. Um tempo em que os olhos não mais choram.


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