Walterson Rosa - 11.dez.2018/Folhapress
Eram os idos de junho de 1993. O Brasil, depois do fim da ditadura militar, aderira a muitos tratados de direitos humanos. Empenhado em afirmar seu respeito às obrigações assumidas, indicou para chefiar a delegação brasileira à Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, em Viena, na Áustria, o ministro da Justiça, Maurício Corrêa. Ali presentes numerosas ONGs brasileiras para participar do fórum global “Direitos Humanos para Todos”.
Havia profundas divergências entre os Estados sobre o que resultaria da reunião. Sinal da relevância do Brasil, o presidente do comitê de redação da conferência foi o embaixador Gilberto Saboia. Graças às qualidades de hábil e paciente negociador do diplomata brasileiro, a conferência consagrou na “Declaração e Programa de Ação”, seu documento final, a universalidade, a indivisibilidade dos direitos humanos e a democracia como forma de governo mais favorável para proteger esses direitos.
O “programa de ação” recomendava aos Estados preparar planos de ação nacionais para melhor promoção e proteção dos direitos humanos e que as entidades da sociedade civil participassem na implementação dos direitos humanos em cooperação com os governos.
Iniciado o governo Fernando Henrique Cardoso, assumiu-se como tarefa preparar o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), com ampla consulta a ONGs de direitos humanos. Em 13 de maio de 1996 foi promulgado o PNDH 1, o primeiro nas Américas e o terceiro no mundo, com ênfase nos direitos políticos e civis. A iniciativa repercutiu em estados e municípios, que criaram programas de direitos humanos.
Em 2002, alargada a participação das ONGs em todo o Brasil, foi publicado o PNDH 2, sublinhando os direitos econômicos, sociais e culturais. A elaboração dos dois PNDHs deve muito ao saudoso e notável cientista político Paulo de Mesquita Neto.
No governo Luiz Inácio Lula da Silva, reafirmada a promoção e a proteção dos direitos humanos como política de Estado, após amplo debate público, com propostas construídas em sucessivas consultas a organizações da sociedade civil e aos governos e conferências regionais em todos os estados, foi revisado e atualizado o PNDH2 e elaborou-se o PNDH3. Os três programas exibem clara identidade de enfoque.
O governo da presidenta Dilma Rousseff retomou várias temáticas do PNDH 3, com destaque para a implantação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Nesse esforço, os titulares de direitos humanos dos governos anteriores se uniram para conclamar o Congresso Nacional a aprovar a criação da CNV, objetivo alcançado graças ao apoio suprapartidário.
O anúncio da senhora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de criação de grupo de trabalho (GT) ministerial para rever o PNDH 3, sem participação da sociedade civil e esvaziando o papel do Conselho Nacional de Direitos Humanos, é gravíssimo retrocesso que preocupa a Comissão Arns.
Os objetivos do GT chapa-branca da ministra são “analisar aspectos atinentes à formulação, desenho, governança, monitoramento e avaliação do PNDH 3” para seu “aprimoramento”. Entenda-se por “aprimoramento” adaptar o programa à pauta bolsonarista, que promove o armamento da população; insiste no negacionismo da pandemia; transgride direitos indígenas e quer abrir seus territórios à mineração; estimula o desmatamento, as queimadas e o envenenamento dos rios na Amazônia; ignora questões de gênero; combate direitos dos LGBTQIA+; nega o aquecimento global; defende o excludente de ilicitude para as corporações militares; e promove o esquecimento de torturas, assassinatos e desaparecimentos perpetrados pela ditadura militar. Esse revisionismo, se consumado, será um desastre para a democracia.
A Comissão Arns propõe às entidades de direitos humanos ficarem atentas para impedir, se preciso com a ajuda do Judiciário, tais retrocessos. E apela às instituições da democracia a barrarem esse ataque à participação da sociedade civil na política de Estado de direitos humanos.
José Carlos Dias
Presidente da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos e ex-ministro da Justiça (governo FHC)
José Gregori
Ex-ministro da Justiça e dos Direitos Humanos (governo FHC)
Paulo Vannuchi
Ex-ministro de Direitos Humanos (governo Lula)
Paulo Sérgio Pinheiro
Ex-ministro da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (governo FHC)
- Todos os autores são fundadores e representantes da Comissão Arns
Fonte: Folha de SP