Camilo Vannuchi
Colunista da UOL
Quando um golpe civil-militar derrubou o então presidente João Goulart, em 1964, os maiores jornais do país comemoraram. Ressurge a democracia, estampou O Globo na primeira página. Democratas dominam toda a nação, foi a manchete de O Estado de S. Paulo. Em defesa da lei dizia o título do editorial, favorável aos militares, publicado pela Folha de São Paulo usando quase toda a mancha da página. Não, ainda não havia censura prévia nem interventores nas redações. Agiram por convicção, numa nítida demonstração de colaboracionismo ou de inépcia na análise política. Ou ambos.
Quando um golpe parlamentar-jurídico-midiático derrubou a então presidente Dilma Rousseff, em 2016, os maiores jornais do país comemoraram novamente. O editorial O desfecho do impeachment, publicado no Estadão, por exemplo, assinalava que a petista finalmente teve seu mandato cassado, levando alívio ao país, tão maltratado pela incúria administrativa e pelo desleixo moral da agora ex-presidente e de seu partido. No conjunto, um libelo repleto de ironias e deboches, que começava com cidadãos honestos deste país e terminava com brasileiros de bem
Em 1964, para a elite econômica, havia um governo a ser destituído. Afinal, ele propunha reformas de base, estatizava setores estratégicos, prometia a reforma agrária. Já pensou? A oposição, mais econômica do que política, percebeu que dava jogo denunciar uma tal ameaça comunista. Era ameaça comunista pra cá, ameaça comunista pra lá. Parte muito expressiva da população se convenceu e até se pôs a marchar pelas ruas. Contra o comunismo. Com Deus - por certo não o do Evangelho. Pela propriedade - a deles, e sem esse papo de função social.
Em 2016, para a elite econômica, havia um governo a ser destituído. Afinal, parecia cada vez mais difícil superá-lo no voto. E ele, desde o antecessor, vinha fazendo coisas bizarras. Não tanto os ajustes fiscais anunciados um ano antes ou o déficit orçamentário que se espraiava desde 2014, mas coisas inimagináveis, como direitos trabalhistas para empregadas domésticas, novas universidades e institutos federais, um programa inédito de financiamento educacional, um programa robusto de construção de moradia popular e uma agenda de obras capaz de gerar um número de empregos que não se via desde JK. Além, é claro, de um investimento no setor de energia e de uma política de preços de de combustíveis que, agora, com o gás a R$ 120 e o litro da gasolina beirando os R$ 8,00, nos faz morrer de inveja. Para os donos do poder econômico, que nem sempre são os donos do poder político, era preciso arrancar a presidente do Planalto a qualquer custo, de preferência sem colocar nenhum tanque nas ruas.
Desta vez, em substituição ao embolorado bordão da ameaça comunista, tiraram outras ofensas da cartola. Era lulopetista pra cá, petralha pra lá, acusações de desvios milionários baseados num engodo ridículo e despótico chamado Lava Jato, até que parte expressiva da população tomou novamente as ruas. Com a família, com Deus, com placas pedindo intervenção militar e a volta do dólar a R$ 1,99, com a camisa da seleção e saudade da Disney, de modo que só faltava uma filigrana para abrir um processo de impeachment: as tais pedaladas fiscais. As pedaladas, você deve se lembrar, são manobras contáveis que aconteciam a rodo nos governos anteriores e nos Estados, e que, segundo o pedido de impeachment protocolado na Câmara dos Deputados, teriam causado um rombo de bilhões nos cofres da União, apenas em 2015. Bom, dois meses antes da cassação, ficou comprovado que Dilma não teve ingerência sobre as tais manobras. Dois dias depois do golpe, pedalar deixou de ser crime. Em 2021, o ministro do STF Luís Roberto Barroso admitiu que não houve crime de responsabilidade nem corrupção, mas que Dilma foi afastada por motivos políticos. Nesta semana, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região extinguiu uma ação popular que pedia que a ex-presidente reembolsasse a União pelos danos cometidos ao Erário. Faz sentido: se ela não teve responsabilidade, não cabe a ela ressarcir nada nem ninguém. Aos poucos, Dilma vai sendo reabilitada, como aconteceu com Jango.
Deu no que deu. O golpe de 1964 inaugurou o mais perverso período da jovem República brasileira. O golpe de 2016 alimentou a disseminação da antipolítica e a criminalização da esquerda, catalisando uma guinada autoritária com ares de ópera bufa, que viria a promover a conversão da arena pública em tenebroso picadeiro. A partir de abril de 1964, seguiram-se vinte e um anos de repressão, censura, sigilos mil, entreguismo, perda de direitos, desmonte da Educação, explosão do custo de vida, pelo menos 434 opositores assassinados, bandidagem e muita corrupção. A partir de setembro de 2016, sobrevieram dois anos de vergonha e quatro anos de repressão, censura, sigilos mil, entreguismo, perda de direitos, desmonte da Educação, explosão do custo de vida, pelo menos 434 opositores assassinados, bandidagem e muita corrupção. A partir de setembro de 2016, sobrevieram dois anos de vergonha e quatro anos de repressão, censura, sigilos mil, entreguismo, perda de direitos, desmonte da Educação, explosão do custo de vida, pelo menos 650 mil mortos por uma gripezinha (e daí?, quer que eu faça o quê?, não sou coveiro), bandidagem e muita corrupção.
Não há espanto em ler, mais uma vez, uma ordem do dia alusiva ao dia 31 de março forjada nas ruínas do Ministério da Defesa e subscrita não apenas pelo chefe da pasta, general Walter Souza Braga Netto, mas também pelos chefes das três armas, o almirante Almir Garnier Santos, o general do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e o tenente brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Júnior. Não há espanto neste eterno dia da marmota porque fomos reduzidos a isso: uma republiqueta ridicularizada no mundo inteiro e novamente governada (?) por um bando de gorilas ineptos e reacionários. E mentirosos. Em março de 1964, as famílias, as igrejas, os empresários, os políticos, a imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as Forças Armadas e a sociedade em geral aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para restabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implantado no Brasil, por grupos que propagavam promessas falaciosas, que, depois, fracassou em várias partes do mundo, diz o texto, publicado no ambiente digital do Ministério da Defesa. , diz o texto, publicado no ambiente digital do Ministério da Defesa. Cinquenta e oito anos passados, cabe-nos reconhecer o papel desempenhado por civis e por militares, que nos deixaram um legado de paz, de liberdade e de democracia, valores estes inegociáveis, cuja preservação demanda de todos os brasileiros o eterno compromisso com a lei, com a estabilidade institucional e com a vontade popular. Sabemos bem o tipo da paz que é propalada pela atual administração, bem como os valores, o modelo de liberdade e a qualidade da democracia. Conhecemos seu empenho para o cumprimento da lei, a estabilidade institucional e, principalmente, a vontade de popular. E é justamente por observar tudo isso que repudiamos, sem hesitar, a ordem do dia, e contamos os dias que faltam para 31 de dezembro.
Em homenagem às vítimas fatais da violência de Estado no Brasil - os mortos e desaparecidos da ditadura, os CPFs cancelados pela polícia que mata, os mortos da Covid e da fome que grassa no Brasil de Bolsonaro, as vítimas da homofobia, da transfobia, da misoginia, do racismo estrutural e do genocídio indígena - organizações da sociedade civil como o Instituto Vladimir Herzog, o Núcleo Memória e uma dezena de outras entidades convidam para a segunda edição da Caminhada do Silêncio, prevista para sair às 19h desta quinta-feira (31/3), aniversário de 58 anos do golpe de 1964, da Praça da Paz do Parque Ibirapuera. Outros eventos de descomemoração do golpe estão previstos para os dias 31 de março e 1º de abril, em diversas cidades, entre eles o lançamento presencial do meu livro Vala de Perus, uma biografia, às 17h desta quinta-feira (31) na Livraria Mandarina, e o ato-desfile do Cordão da Mentira, a partir das 18h desta sexta-feira (1), com concentração em frente ao Teatro Municipal, ambos em São Paulo.