A judicialização tem sido, afinal de contas, o principal instrumento de reação às medidas tomadas pelo governo Bolsonaro. A Lei Aldir Blanc teve de chegar ao Superior Tribunal Federal (STF) para ter a razoabilidade garantida e o ex-ministro Osmar Terra tornou-se réu em uma ação após determinar a suspensão de um edital de projetos para a rede pública de TV que previa o investimento em séries com temática LGBT.
No mesmo dia em que a Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) informou que, devido à pandemia, as indústrias culturais e criativas fecharam 10 milhões de postos de trabalho no mundo em 2020, o governo Bolsonaro publicou uma Instrução Normativa (IN) que desfere um novo golpe contra o setor cultural no Brasil.
As mudanças na Lei Rouanet, efetivadas por meio de uma canetada, cumprem as ameaças feitas ao longo de três anos contra o mecanismo criado três décadas atrás com objetivo de atrair a iniciativa privada para o setor cultural. As novas regras inviabilizam o modelo.
Por mais que, até aqui, o governo viesse criando dificuldades para o uso da lei e os secretários Mário Frias e André Porciúncula seguissem reiterando o discurso da “mamata” para agradar a base bolsonarista, não havia sido colocada em prática nenhuma mudança tão brusca.
A IN regulamenta um decreto de 2021 que mirava, sobretudo, as grandes instituições culturais O texto parecia, além disso, ter como alvo preferido dois museus paulistas: o Museu da Língua Portuguesa, que seria então reaberto, e o Museu do Ipiranga, a ser inaugurado este ano, no contexto do bicentenário da Independência.
As medidas oficializadas ontem atingem de fato os museus. Mas não só. Os novos tetos, de 500 mil reais a 6 milhões de reais por projeto, de até 3 mil reais de cachê, e de 10 mil reais para locação de espaços são incompatíveis com o mercado e com a própria lei.
O discurso de democratização dos recursos, encampado por Frias e Porciúncula, é, da forma como está constituído, hipócrita e descolado da realidade. Os pequenos produtores, desde sempre, estão excluídos do mecanismo. E isso não foi diferente desde que Bolsonaro assumiu.
A despeito da pandemia, a captação de recursos via Lei Rouanet em 2021 foi a maior desde 2014, atingindo 1,7 bilhão de reais. Mas, como sempre, os valores ficaram concentrados nos grandes proponentes e nos grandes patrocinadores. Entre os dez maiores captadores da Lei Rouanet em 2020, seis eram instituições paulistas.
O que vai acontecer agora é que os pequenos continuarão excluídos e os grandes se verão impossibilitados de seguir atuando . Quando se fala em concentração de recursos, não é demais lembrar que a Lei Rouanet é só um pedaço da Lei nº 8.313, criada pelo intelectual Sérgio Paulo Rouanet em 1991. Além do incentivo fiscal, a lei instituiu o FNC (Fundo Nacional da Cultura) e os Ficart (Fundos de Investimento Cultural e Artístico). Os Ficart nunca foram implantados e o FNC, pensado para apoiar o iniciante e o pequeno, só fez encolher.
Pensado como uma parceria público-privada, o uso do incentivo é factível apenas para as grandes empresas – aquelas tributadas pelo lucro real – e reproduz, inevitavelmente, a concentração de renda do País. Os debates em torno de necessidades de mudança nessa estrutura são tão antigos quanto a própria lei e se mostraram especialmente intensos durante os dois governos Lula. Mas o que se faz agora não tem nada a ver com corrigir distorções , Tem a ver, tão somente, com uma atitude a um só tempo revanchista e eleitoreira. Não é coincidência, inclusive, que a IN tenha sido publicada na semana seguinte à filiação de Mário Frias ao Partido Liberal (PL). Frias está em campanha, e o setor cultural é, hoje, uma caixa de eco importante para o bolsonarismo raiz.
Por atingir de forma direta também os governos estaduais – que usam a lei de forma indireta, para manter seus equipamentos culturais –, a IN deve acirrar ainda mais as disputas judiciais em torno da cultura.
No caso específico desta IN, o caminho para isso foi aberto em dezembro, quando a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou uma ação no STF contestando, justamente, o decreto agora regulamentado e seis portarias que denotariam um “estado de coisas inconstitucional”.
A continuidade dos maiores projetos culturais do País em 2023 – os projetos para 2022 já estão aprovados e a IN não deve incidir sobre eles – está, portanto, nas mãos do sistema judiciário.
Por Ana Paula Sousa
Editora de Cultura da edição impressa de CartaCapital. Doutora em Sociologia pela Unicamp