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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Dois anos de maior acesso a armas reduziu violência como dizem bolsonaristas?

Driblando a necessidade de o Congresso aprovar novas leis, foram editados mais de 30 atos normativos, como portarias e decretos presidenciais, para desburocratizar e ampliar o acesso a armas e de munição que podem ser adquiridas por cidadãos comuns e por aqueles que têm registro de CAC (colecionador, atirador e caçador), assim como liberar a essas pessoas o acesso a armamentos de maior potencial ofensivo, como fuzis.

Na iniciativa mais recente, quatro decretos presidenciais foram publicados na noite de sexta-feira (12/02) elevando a quantidade de armas que um cidadão comum pode comprar de quatro para seis (em 2019 já havia passado de duas para quatro). Além disso, atiradores agora foram autorizados a adquirir até 60 armas e caçadores, até 30, sendo exigida autorização do Exército apenas quando essas quantias foram superadas. O volume de munições que pode ser comprado por essas categorias também subiu para 2.000 no caso de armas de uso restrito e 5.000 para armas de uso permitido.

Embaladas pelo discurso da família presidencial de forte apologia ao uso de armas, essas ações têm dado resultados. Estatísticas da Polícia Federal e do Exército — órgãos responsáveis pelo registro de armamentos — mostram que os brasileiros estão se armando como nunca antes.

Segundo dados obtidos pela BBC News Brasil, os novos registros de CAC concedidos pelo Exército bateram recorde em 2019 e 2020, somando 178.721, quantidade que supera todos os registros liberados nos dez anos anteriores (150.974 de 2009 a 2018).

Já o registro de novas armas pela Polícia Federal também bateu dois recordes consecutivos, somando 273.835 na primeira metade do governo Bolsonaro, sendo quase 70% referentes a registros obtidos por cidadãos (o restante inclui categorias como servidores públicos com direito à porte, revendedores e empresas de segurança privada). O número significa um aumento de 184% frente à soma de 2017 e 2018 (96.512) e supera o total dos seis anos anteriores a Bolsonaro (265.706 de 2013 a 2018).

Enquanto o impacto do governo Bolsonaro no maior armamento da população é inegável tanto para apoiadores como para críticos da sua política armamentista, os dois grupos travam uma batalha sobre quais os impactos dessa nova realidade para a violência e a criminalidade no país.

De um lado, pesquisadores da segurança pública dizem que estudos científicos deixam claro o aumento das mortes provocadas por mais armas em circulação. De outros, os entusiastas do uso de armas para autoproteção citam a queda acentuada dos homicídios no Brasil em 2019 para sustentar que a população mais armada contribuiu para a redução da violência — esquecendo de mencionar, porém, a volta do aumento dos assassinatos em 2020 (alta de 5%, segundo dados preliminares), justamente quando o consumo de armas acelerou ainda mais.

Estudioso da segurança pública, por sua vez, dizem que a queda nos homicídios — que tiraram a vida de 45.433 pessoas em 2019 no Brasil, após o recorde de mais de 65 mil mortes em 2017, segundo estatísticas oficiais do Datasus — reflete outros fatores, como envelhecimento da população (homicídios são mais comuns entre os mais jovens), melhores políticas estaduais de combate à violência e tréguas no conflito entre entre facções criminosas.

Apesar disso, a associação entre mais armas e menos homicídios tem sido exaltada nas redes sociais por parlamentares, como os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Caroline De Toni (PSL-SC) e Rogério Peninha Mendonça (MDB-SC).

Em um dos posts do filho do presidente, ele compartilhou um gráfico mostrando o aumento das armas no país em 2018 e 2019 e a queda dos homicídios no mesmo período, acompanhada da seguinte mensagem: O estatuto do desarmamento deixou os bandidos mais à vontade. Resultado: aumento no número de homicídios. A flexibilização no aceso (sic) às armas resultou, junto com outras políticas, na diminuição histórica de homicídios, dentre outros crimes.

Os números são comemorados também por Hugo Santos, presidente da Associação dos Proprietários de Armas de Fogo do Brasil (Aspaf). Ele espera que a queda da criminalidade ajude na argumentação para manter as medidas de Bolsonaro quando seu governo acabar.

Nós conseguimos conquistar muitos direitos agora, ter muitos avanços (no acesso a armas), mas sabemos que no futuro nós vamos ter que lutar para manter esses direitos, que o governo não vai durar pra sempre. Vai haver um momento em que vamos ter que militar por essas causas, disse à BBC News Brasil.

Assim, ter esses números, desenvolver pesquisas, que é o que nós aqui da associação fazemos, é importantíssimo, porque vamos apresentar números: ´olha a criminalidade, os números são esses aqui após o acesso às armas, e antes era isso daqui´, então a gente tem trabalhado muito nesse sentido, reforçou.

Política de armas é como a da covid-19: anticientífica

O Estatuto do Desarmamento citado por Eduardo Bolsonaro é uma lei de 2003 que criou regras mais restritivas para acesso a armas e penas mais duras para porte e posse ilegal — segundo pesquisas que analisaram seu impacto, houve redução da taxa de crescimento nas mortes por armas de fogo após o estatuto, em especial em Estados como São Paulo, que adotaram medidas mais rigorosas de retirada de armas das ruas.

Ou seja, esses homicídios seguiram crescendo, mas em ritmo menor. Segundo a edição mais recente do Atlas da Violência, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a taxa média anual de crescimento das mortes por armas de fogo passou de 6% entre 1980 e 2003 para 0,9% nos quinze anos após o Estatuto do Desarmamento (2003 a 2018).

Com isso, após a proporção dessas mortes no total de homicídios do país dar um salto de 40% no início dos anos 80 para para 70,9% em 2013, manteve-se nesse patamar nos anos seguintes (foi de 71% em 2018).

Se o ritmo de crescimento tivesse se mantido no mesmo nível de antes do estatuto, as mortes por armas de fogo já teriam ultrapassado o patamar de 80 mil em 2018, diz ainda o Atlas da Violência — naquele ano o número ficou em quase metade disso (42.754, segundo números do Datasus).

A política de armas do Bolsonaro representa muito o que ele anda fazendo também com covid-19. O que as duas políticas têm em comum? Primeiro, são políticas anticientíficas, que desprezam a ciência. E, segundo, são políticas irresponsáveis e que levam ao aumento de mortes no país, afirma o economista Daniel Cerqueira, idealizador do Atlas da Violência e que no momento está cedido pelo Ipea para presidir o Instituto Jones dos Santos Neves.

Homicídios caíram em 2019 ao menor nível em duas décadas

 

Após uma década de crescimento quase constante, o número de homicídios no Brasil atingiu o patamar recorde de 65.602 em 2017, segundo números do Datasus, banco de dados do Ministério da Saúde sobre causas de mortes no país.

Nos dois anos seguintes, porém, os assassinatos apresentaram uma queda expressiva, recuando para 57.956 em 2018 (menos 11,6%, ante 2017) e para 45.503 em 2019, nova queda de 21,5% para o menor patamar desde 2000 (45.433).

As mortes causadas especificamente por armas de fogo tiveram diminuição semelhante, recuando do seu ápice de 48.650 em 2017 para 33.136 em 2019, menor patamar desde 1999 (29.938).

Esses números foram destacados no ano passado por Fabricio Rebelo em seu site pessoal dedicado ao tema armamentista e passaram a ser citados por parlamentares e sites bolsonaristas para sustentar que a queda dos assassinatos no país era um reflexo do aumento das armas nas mãos dos cidadãos.

Em um desses compartilhamentos, o deputado Rogério Peninha Mendonça postou a informação em sua conta no Facebook em setembro, estabelecendo uma confusa associação entre o aumento de armas em 2020 e a redução de mortes no ano anterior.

Rebelo é atleta amador de tiro desportivo, formado em direito e assessor jurídico no Tribunal de Justiça da Bahia. Ele contou à BBC News Brasil que começou a pesquisar a questão armamentista por conta própria (sem vinculação com alguma instituição acadêmica) após o Estatuto do Desarmamento.

Embora seus dados sejam usados para defender o impacto de mais armas na redução de crimes, ele diz que a conclusão é leviana porque múltiplos fatores influem na violência, como sistema jurídico-penal, legislação, momento socioeconômico.

Segundo Rebelo, seu objetivo não é mostrar que existe uma relação entre mais armas e menos crimes, mas desconstruir o mito de que o inverso é verdadeiro.

O que estamos percebendo agora é a ausência dessa relação de causalidade. Isso foi um mito construído ao longo dos últimos anos no sentido de associar as duas coisas: dizer que mais armas legalmente circulando implicariam em mais homicídios, afirma.

Os nossos indicadores de criminalidade nunca permitiram fazer essa constatação. Isso sempre foi artificialmente construído, acrescenta.

Rebelo divulga as informações que pesquisa e coleta, como os números do Datasus, em um site chamado Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes)— apesar de o nome dar um aspecto institucional ao seu trabalho de divulgação, Rebelo disse que não tem outras pessoas atuando junto com ele.

Segundo o atirador, ele já fez tentativas de realizar um mestrado sobre o tema, mas desistiu por considerar que as portas estão fechadas para quem contesta a tese de que mais armas geram mais crimes.

Eu justamente acabei fundando o Cepedes diante da resistência de meio acadêmico à aceitação de projetos de pesquisa que questionassem o desarmamento, reclama.

Para os estudiosos do tema, porém, o entendimento de que mais armas têm impacto negativo na segurança não se trata de mito ou resistência a outras teses, mas da conclusão de estudos conduzidos com rigor científico.

O economista e cientista de dados Thomas Victor Conti, professor do Insper e do Instituto de Direito Público (IDP-SP), realizou em 2017 uma revisão de estudos acadêmicos intitulada Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes.

Ele concluiu que 90% das revisões de literatura são contrárias à tese mais Armas, menos Crimes.

Das 10 revisões de literatura ou meta-análises publicadas em periódicos com revisão por pares entre 2012 e 2017, nove concluíram que a literatura empírica disponível é amplamente favorável à conclusão que a quantidade de armas tem efeito positivo sobre os homicídios, sobre a violência letal e sobre alguns outros tipos de crime, diz sua análise.

Ele ressalta que a grande maioria dos estudos internacionais de alta qualidade acabam sendo quase todos sobre os Estados Unidos, pois é um dos únicos países com dados confiáveis e amplamente disponíveis que possui um problema bastante grave de violência por armas de fogo.

Considerado um dos estudos mais abrangentes sobre o tema, pesquisa desenvolvida por John J. Donohue (Universidade de Stanford), Abhay Aneja (Universidade da Califórnia) e Kyle D. Weber (Universidade de Columbia) estimou que taxa de crimes violentos aumentava entre 13% e 15%, em dez anos, nos estados norte-americanos que possuíam legislações flexíveis ao acesso à arma de fogo.

O que explica a forte queda nos assassinatos no país?

 

A queda dos homicídios em 2019, confirmada pelos dados oficiais do Datasus, foi captada também pelo Monitor da Violência — ferramenta do portal G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública que levanta mensalmente os homicídios registrados pela secretarias estaduais de Segurança Pública.

Segundo esse monitoramento, porém, a queda dos assassinatos em 2019 foi puxada principalmente pela redução no primeiro semestre. A partir de setembro daquele ano, as mortes violentas voltaram a subir mês a mês, atingindo seu ápice em março de 2020 (4.150 mortes naquele mês), e voltando a cair a partir de abril, período que coincide com as medidas de isolamento social da pandemia de coronavírus (cerca de 3,2 mil ao mês de julho a setembro). Já no último trimestre, as mortes violentas tiveram nova elevação, se aproximando do patamar de 4 mil mortes ao mês.

Com isso, o Monitor da Violência registrou 43.892 mortes violentas em 2020, contra 41.730 em 2019, alta de 5% nos homicídios do país.

Embora estudos ainda precisem ser feitos para investigar mais a fundo essa variação, especialistas em segurança pública consideram que a queda dos assassinatos em 2018 e 2019 é resultado de múltiplos fatores, entre eles um apaziguamento temporário na briga entre facções.

Apesar de os homicídios terem atingido patamar recorde em 2017, a maioria dos Estados do país já apresentava redução dos assassinatos naquele ano, refletindo o aperfeiçoamento de políticas estaduais de segurança, dizem estudiosos.

Segundo o Atlas da Violência, o crescimento no resultado nacional naquele momento refletiu a forte alta em especial no Norte e Nordeste do país, regiões que nos últimos anos ganharam importância como rota de exportação de cocaína peruana e boliviana para Europa e África. Isso provocou uma disputa violenta entre facções, que, após muitas perdas de vidas, acabaram estabelecendo tréguas. Já em 2020, esse fator pode ter se revertido novamente, uma vez que foi a região Nordeste que puxou a alta dos homicídios no país.

O defensor do armamentismo Fabrício Rebelo cita justamente as mortes associadas ao tráfico de drogas para defender o mercado legal de armas. A grande expansão do tráfico de drogas no Brasil é um dos maiores catalisadores dos nossos altos índices de homicídio, o mercado legal de armamento jamais esteve vinculado a isso, afirma.

Daniel Cerqueira contesta esse raciocínio. Segundo ele, pesquisas feitas com inquéritos policiais em Estados como Sergipe, Rio de Janeiro e nas cidades de Belo Horizonte e Maceió revelam que as mortes relacionadas à ilegalidade das drogas - desde tráfico, disputas entre facções criminosas e repressão estatal ao comércio e consumo - respondem por um terço ou até 40% dos assassinatos em que estava identificada a motivação do crime.

Isso inclui qualquer evento associado com grupos de narcotraficantes, seja brigas entre eles mesmo, seja com envolvimento da polícia. O resto são crimes interpessoais, feminicídio, latrocínio, outras mortes por intervenção policial que não associadas ao tráfico, entre outras, afirma.

Para os críticos da política de Bolsonaro, o aumento da circulação de armas pode aumentar as mortes provocadas por pessoas que não são criminosos habituais (por exemplo, em um momento de descontrole durante uma briga), assim como abastecer criminosos por meio de furtos ou roubos de armas legais.

O próprio presidente é exemplo desse tipo de situação: em 1995, Bolsonaro sofreu um assalto em Vila Isabel, na zona norte do Rio de Janeiro, em que o criminoso levou sua moto e sua arma.

Para a diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, é ainda mais preocupante que a facilitação do acesso não esteja sendo acompanhada de medidas do governo para controlar a circulação de armas.

Em abril, o presidente determinou que fossem revogadas três portarias do Exército que tornavam mais rígido o rastreamento, identificação e marcação de armas e munições, após reclamações de atiradores CAC sobre novas burocracias. O Exército disse que as portarias seriam revisadas e novamente publicadas, mas isso não aconteceu até o momento.

Além de aumentar o acesso, o governo está fazendo muito pouco para controlar as armas ilegais. Porque não tem mecanismo de rastreamento, os mecanismos de marcação de munição que existem são falhos, e estamos num limbo normativo após a revogação dessas portarias. Então, está a farra das armas no Brasil, critica.

 


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