Comunicado publicado no dia 17 de abril 2020
As estruturas legais de caráter excepcionais promulgadas em cada país por causa da crise sanitária (que vão desde o estado de emergência ao estado de exceção, de catástrofe ou estado de calamidade pública de acordo com as regras adotadas em cada país) foram interpretadas, em alguns casos, por membros das forças de segurança, como cenários liberados para cometer abusos, em particular relacionados aos setores mais vulneráveis da população diante da pandemia.
No Peru se avançou particularmente concedendo-se impunidade antecipada à possíveis ações abusivas das forças da ordem. Neste sentido, o Presidente da República promulgou a chamada Lei de Proteção Policial, que limita as atribuições dos juízes para decretar medidas de detenção, mesmo ao encontrarem-se provas suficientes de uso irregular de armas por membros das forças policiais, no contexto da vigilância durante a pandemia.
Por outro lado, a emergência reativou os pedidos de anulação quanto ao cumprimento das sentenças das pessoas detidas por crimes contra a humanidade. O caso do Chile é o mais preocupante a esse respeito, pois foi reativada a discussão no Congresso do projeto chamado Lei Humanitária, que regulamenta a substituição de sentenças de prisão por razões humanitárias, permitindo que os condenados de mais de 75 anos de idade ou que sofram de doenças terminais, possam usufruir de prisão domiciliar. Os senadores e deputados pertencentes à coalizão de direita denominada “Vamos Chile” pediram ao Tribunal Constitucional a aprovação desse benefício também para aqueles que foram condenados por crimes contra a humanidade sendo que o Presidente da República se manifestou a favor de libertá-los através da concessão de indulto.
De acordo à sentença promulgada pela Câmara Criminal do Tribunal de Apelações de Santiago do Chile, com base a esta lei, foi decidido em 9 de abril reduzir as penas e liberar para cumprir a sentença no seus domicílios a 17 militares condenados por violação de direitos humanos, decisão ainda pendente de confirmação pela Suprema Corte daquele país.
Os pedidos para concederem-se medidas desse tipo são repetidos hoje em outros países, tanto pelos setores militares como pelos próprios condenados, tanto na Guatemala como na Argentina.
Enquanto se utilizam subterfúgios, a pretexto da pandemia, para abreviar as penas a que foram condenados os repressores e os acusados de crimes de lesa humanidade acusados de graves violações dos Direitos Humanos, durante as recentes ditaduras, se repetem declarações negacionistas e apologéticas em relação a regimes militares. Exemplo notável foi visto no Brasil quando o próprio Presidente da República do Brasil e altos funcionários de seu governo decidiram emitir notas favoráveis ao regime ditatorial, no âmbito de uma nova comemoração do golpe de 31 de março de 1964. Em sintonia com essas declarações, devido aos conflitos internos que surgiram no seio do governo brasileiro devido às opiniões contrarias em relação aos cuidados frente à pandemia, foi decidida uma militarização da gestão da crise da saúde, assumindo como chefe da luta contra o coronavírus o chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto. Mais grave foi, depois de amplos embates entre o presidente e o seu Ministro da Saúde, a decisão de substitui-lo fato que foi visto com preocupação por amplos setores da imprensa e da opinião publica brasileira
Também é particularmente preocupante a decisão proferida em 3 de abril pela Procuradoria Geral da Colômbia, ordenando que as autoridades distritais e locais procedam urgentemente ao enterro dos corpos que permaneçam nos necrotérios de seus municípios como sendo de “não identificados”. Situação semelhante ocorreu no Brasil e nos estados da região noroeste do México, com a publicação das diretrizes para disposição de cadáveres confirmados e com suspeita de COVID-19 em diferentes Estados, ordenando-se o enterro e /ou a cremação das pessoas falecidas, ainda sem confirmar a causa-mortis ou ainda sem proceder à sua devida identificação precisa.
A comunicação dos governos para a prevenção do COVID-19 e a exortação para “ficar em casa” está sendo vista como uma forma autoritária e ameaçadora em alguns países, como Guatemala e Equador, por deixar de lado as necessidades de pessoas que não têm recursos para viver nesse contexto e aqueles sem moradia fixa. Em outros casos, como no Brasil, as campanhas do governo desinformam a população, na medida em que o próprio Presidente minimiza o perigo do vírus e desobedeceu pessoalmente às regras de isolamento decretadas pelo Ministério da Saúde de seu país e da OMS. Organizações no México solicitaram que as informações sobre a pandemia sejam transmitidas em todas as línguas nativas dos povos indígenas, para garantir que eles possam cumprir com os cuidados recomendados para proteger sua saúde. Por outro lado, na Guatemala, jornalistas e organizações sociais denunciaram a falta de informação por parte das autoridades, o que viola o direito à informação e o poder de estabelecer a devida prevenção necessária.
Outra questão que denunciamos é o aumento da violência contra as mulheres. No México, desde meados de março, quando se começou o isolamento social para impedir a propagação do coronavírus. A partir de 24 de março quando se iniciou a quarentena no México, os relatos de violência contra as mulheres naquele país aumentaram significativamente. Os dados do Instituto Nacional do México reportam um aumento de 60% nos pedidos de ajuda e a acolhida de vítimas cresceu em 5%. Em São Paulo, centro dos casos de covid 19 no Brasil, durante os primeiros dez dias de quarentena, as denúncias aumentaram em 30%. Na Argentina, 18 mulheres foram assassinadas por seus companheiros, ou ex-companheiros, nos primeiros 20 dias de quarentena, que começou em 20 de março. Os pedidos de ajuda por telefone aumentaram em 39%
Os direitos trabalhistas também estão sendo violados com o pretexto da crise.
Simultaneamente e apenas iniciada a crise, vários países da região adotaram medidas destinadas a proteger as grandes empresas, como foram os casos no Brasil, Chile, Colômbia ou Guatemala, destinando a elas empréstimos favoráveis ou subsídios ao mesmo tempo permitindo que elas não pagassem salários ou autorizando reduções nos dias úteis e salários. Essas medidas agravam a situação social dos trabalhadores formais, ao mesmo tempo em que os informais, os que trabalham por conta própria ou vivem em situação de pobreza e indigência terão que enfrentar inatividade em muitos casos sem auxílio estatal ou com programas que garantam apenas recursos escassos. Na maioria dos países, os serviços públicos devem continuar a ser pagos, independentemente da situação extraordinária imposta pela pandemia, e mesmo em alguns casos, como no Uruguai, o governo decretou um aumento em todas as tarifas públicas a partir do dia 1º. de abril.
O fechamento de fronteiras foi decretado em muitos casos, sem levar em conta questões de união familiar ou razões humanitárias. No caso do Brasil, a restrição à entrada de pessoas não brasileiras originárias de países com altas taxas de infecção só isentou os Estados Unidos da América, o país com os números mais avançados de infecção e mortes no continente. No sul do México, foram relatadas situações de maus-tratos e tortura contra migrantes da América Central que tentavam se refugiar no país.
No contexto de uma quase absoluta ausência de coordenação de políticas públicas pelos governos e da desativação de órgãos institucionais de âmbito regional, instamos as comunidades a continuarem suas iniciativas de solidariedade, de proteção e cuidado mútuo. Valorizamos as experiências estatais que buscam garantir assistência universal à saúde e os direitos das populações mais vulneráveis e chamamos a atenção para certos padrões comuns de risco na observância dos direitos humanos e da democracia na região. Nos pronunciamos de maneira categórica a favor da gestão democrática e respeitosa dos direitos humanos mesmo nesta pandemia. Infelizmente, a pandemia expôs a precariedade dos sistemas de saúde na região e o abandono pelos Estados desse serviço tão vital para a população.