Após dois anos em queda, as mortes violentas voltaram a crescer no Brasil em 2020. É o que mostram dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgados nesta quinta-feira 15.
Ao todo, foram notificados 50.033 assassinatos no País durante a pandemia de Covid-19: o equivalente a uma morte a cada dez minutos, ou 4,8% a mais em relação a 2019.
Com isso, a taxa do Brasil chegou a 23,6 homicídios por 100 mil habitantes em 2020 – resultado pior do que no ano anterior de 22,7 casos por 100 mil habitantes em 2020. Em 2019, o número total de assassinatos havia sido 47.742.
O mau desempenho geral do País foi puxado por homicídios comuns (que subiram 6%, passando de 39,7 mil para 42,1 mil casos) e pela letalidade policial (de 6,3 mil para 6,4 mil, ou 1% maior). Este último índice, inclusive, vem crescendo desde 2013. Os assassinatos de agentes de segurança também aumentaram no período: de 172 para 194 casos.
O Atlas da Violência de 2020 destaca que “entre 1991 e 2018, 232.830 crianças e adolescentes foram assassinados, sendo que 163.980 foram vítimas de arma de fogo”. De acordo com o DATASUS, em 2019, foram 7.187 crianças e adolescentes vítimas de homicídio, sendo 5.425 decorrentes de arma de fogo. Do total de mortes violentas de crianças e adolescentes, 80% eram negros.
A faixa etária dos 15 aos 29 anos é a de maior vitimização somando 51% do total dos homicídios. Esses dados mostram que a principal causa de morte nessa faixa etária é a violência, que em 76% dos casos tiveram uso de arma de fogo.
Outra explicação para a subida das mortes violentas é o aumento de armas de fogo circulando no País. Apesar do registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição no Brasil serem regulados pelo Estatuto do Desarmamento, de 2013, em 2019 e 2020, o governo federal publicou mais de 20 decretos e portarias flexibilizando o controle e o acesso a armas e munições.
A difusão das armas de fogo nas cidades é um importante elemento de aumento os crimes letais contra a pessoa. Segundo o estudo Armas e sensação de segurança, publicado em 2015 pelo IPEA, cada 1% a mais de arma nas mãos da população, morrem 2% a mais pessoas.
Em 2021, foi facilitado o acesso de cidadãos comuns a armas à interpretação de requisitos, aos tipos e às quantidades de armas acessíveis. Essa flexibilização já apresenta impactos importantes na quantidade de armas legalmente compradas, sendo constatado em dezembro de 2020 um aumento de 65% na quantidade de armas com registro legal ativo, em comparação com 2018.
As armas registradas em 2019 e 2020 por pessoas que se declararam caçadores, atiradores desportivos e colecionadores aumentaram 58%, passando de 351 mil para 556 mil armas. Quando considerada a quantidade de pessoas habilitadas para compra de arma apenas nas categorias de caçadores, atiradores e colecionadores, a quantidade de novas concessões nos últimos dois anos supera em 18% os 150 mil registros emitidos nos 10 anos anteriores (2009 a 2018), somando 178.72118 novas pessoas habilitadas.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, atualmente há 2.077.126 armas nas mãos de civis. Só em 2020 o incremento foi de 186.071 novas armas registradas na Polícia Federal, número 97,1% maior em relação ao ano anterior, tendo duplicado o número de armas longas, como carabinas, espingardas e fuzis.
“Já é possível perceber correlação entre o aumento de armas de fogo e o números de assassinatos. Para o País inteiro, a política de liberalização começa a ter efeito nas ruas, embora essa não seja a única causa”, afirma Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum. Na visão de especialistas, políticas para redução de crimes contra a vida passariam por aperfeiçoar o controle e rastreabilidade das armas.
O aumento de mortes violentas derivadas de brigas e conflitos domésticos também é um dos argumentos de especialistas em segurança pública que criticam a legislação mais branda para o acesso às armas. Daniel Cerqueira, do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública observou, que parte da população acredita que a violência é provocada apenas por “criminosos profissionais”, que atuam de maneira intencional para cometer roubos ou assassinatos. A CPI das Armas no Rio de Janeiro, realizada em 2016, verificou que entre 20% a 25% das mortes têm motivação interpessoal: brigas de bar, entre vizinhos, no trânsito.
Diferentes estudos estrangeiros comprovam que mais armas circulando também aumenta os riscos de acidentes domésticos envolvendo crianças, suicídios, violência contra a mulher.
Na série de decretos publicados pelo presidente Jair Bolsonaro entre 2019 e 2020, as normas de importação também foram alteradas e flexibilizadas. Em 2020 foi constatado o aumento de 94% na importação de revólveres e pistolas em relação a 2019.
Sobre o perfil das armas apreendidas pelas polícias em quatro estados (BA, PE, RJ e SP) e pelas polícias federais, nos anos de 2018 e 2019, a pesquisa destaca que 55% delas eram de marcas brasileiras (ou 82% entre as com informação sobre a origem), sendo 6% do total de origem europeia.
O relatório também tem um chamado à responsabilidade de países que exportam armas para o Brasil. Entre as armas de maior potencial letal, a participação de armas europeias é muito maior: 18% de todas as pistolas, 11% de todas as submetralhadoras e 8% de todos os fuzis apreendidos são europeus. Fuzis e submetralhadoras são armas que disparam em rajadas e podem perfurar paredes e outros anteparos, gerando maior vitimização, como os frequentes episódios de bala perdida
A Alemanha é o maior fornecedor de armas do Brasil. Em 2020, o país europeu lucrou mais de 114 milhões de euros com equipamentos militares. A Suíça, por sua vez, forneceu material de guerra no valor de mais de 27 milhões de euros para o Brasil, somente no ano passado, colocando o país em 8º lugar entre os maiores importadores de materiais bélicos suíços.
Um outro relatório, também divulgado nesta quarta, joga luz sobre como a falta de controle de armas e munições de uso restrito tem alimentado execuções e chacinas e violado sistematicamente os direitos humanos, especialmente neste momento de flexibilização da política de armas.
Produzido do Instituto Sou da Paz com apoio da organização europeia Terre des Hommes, o levantamento aponta que, desde a posse de Bolsonaro, houve um forte aumento da letalidade militar e policial. As maiores vítimas desse fogo cruzado são os moradores das favelas e periferias urbanas, especialmente entre crianças, adolescentes e jovens: 74% das vítimas letais da polícia são menores de 29 anos, tendo 24% delas idade inferior 19 anos. Meninos e homens representam 99% desse contingente, e pessoas negras, 79%.
No Rio de Janeiro, quase uma em cada três mortes violentas em 2019 foi causada pela polícia. Em São Paulo, foram uma em cada cinco. O fenômeno é mais grave nos bolsões de pobreza. Em alguns bairros paulistas, especialmente nas regiões periféricas, a polícia é responsável por quase metade de todas as mortes violentas.
Em 2019, 6.375 pessoas morreram em decorrência de operações policiais, representando 13% do total, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020. O número é maior do que o de qualquer outro país.
Esses dados, contudo, não se refletem na penalização de agentes do Estado. “Muitos casos de morte violenta não têm identificação de autoria, falhando na responsabilização do autor e deixando as famílias das vítimas e as comunidades afetadas sem acesso à verdade, à memória e sem reparação”, cita trecho do relatório do instituto. Falhas na responsabilização de desses agentes já geraram duas condenações do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.
Nos últimos anos, discursos autoritários e o populismo penal têm ganhado espaço na política brasileiro. O atual presidente, Jair Bolsonaro, afirmou diversas vezes em sua carreira política e na sua campanha presidencial que “criminosos” deveriam ser mortos e relativizou práticas como a tortura. No âmbito local, diversos governadores compartilham dessa proposta.
Fonte: Carta Capital