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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Camilo Vannuchi - O dia em que a Lei de Segurança Nacional foi condenada

O general e presidente do Brasil Ernesto Geisel recebe cumprimentos em forma de continência de militar
Imagem: Manoel Pires/Folhapress

Em nome da Lei de Segurança Nacional, apenas nos últimos meses, um youtuber foi notificado, um blogueiro bolsonorista foi parar no xadrez e um deputado de extrema direita foi igualmente detido por incitar a população contra o Supremo Tribunal Federal. Mais recentemente, quatro rapazes de Brasília foram detidos durante uma manifestação, com base na mesma Lei, por exibir uma faixa com as palavras Bolsonaro genocida e uma charge em que o Presidente da República aparece ao lado de uma suástica. Não deu em nada e eles foram soltos em seguida. Menos um, que continua preso, agora em regime semiaberto, devido a condenações anteriores.

A LSN, como é frequentemente referida, tem seu lado Geni: vez ou outra, os mesmos que se lambuzaram a noite inteira - até ficarem saciados - são os primeiros a atirar pedras - e a tachar a Lei de maldita. Esperneiam quando ela é usada para enquadrar Daniel Silveira e regozijam-se quando o alvo é Felipe Neto. Ou vice-versa. Seja como for, sobram indícios de que a Lei de Segurança Nacional não envelheceu bem. E, neste caso, não há toxina butolínica e tonalizante acaju que deem jeito.

Considerada um entulho da ditadura, a Lei de Segurança Nacional foi promulgada em 1983. É anterior, portanto, à eleição direta de 1989, à Constituição Federal de 1988, ao acidente com Césio em Goiás, em 1987, ou à volta dos civis ao Governo, em 1985. Quando foi aprovada, o mundo era dividido pelo muro de Berlim e ainda não tinha sido inventado o VAR, o maior caga-regras do esporte bretão, que em pouco tempo deixaria o futebol um pouquinho mais chato.

Outras versões da lei são ainda anteriores. A primeira lei de segurança nacional surgiu num longínquo 1935. A primeira sob a égide dos generais, em 1967. A de 1969 introduziu a pena de morte no código brasileiro e previu pena capital em casos de crimes de guerra, punidos com fuzilamento. A pena de morte foi revogada na edição seguinte da lei, a de 1978, que, por sua vez, manteve outros anacronismos, como a proibição das greves, o veto às ocupações de terra e a criminalização do jornalismo. Divulgar, por qualquer meio de comunicação social, notícia falsa, tendenciosa ou fato verdadeiro truncado ou deturpado, de modo a indispor ou tentar indispor o povo com as autoridades constituídas, dizia o artigo 14, ferindo de morte o jornalismo independente.

Essa lei continuou vigente após a Lei da Anistia, sancionada em agosto de 1979. Estranho, muito estranho. De repente, o último preso político foi solto, exilados começavam a desembarcar em Cumbica e no Galeão - um deles disposto a pegar uma praia vestindo sunga de crochê - e Simone cantava nas rádios os versos insuspeitos de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós: Pode ir armando o coreto / e preparando aquele feijão preto / eu tô voltando.... Ora, que tipo de anistia política era aquele que autorizava perseguições, indiciamentos, inquéritos e prisões com base numa doutrina de segurança que havia muito deveria ter sido atualizada? Como podiam celebrar a soltura do último preso político se, na manhã seguinte, sindicalistas eram presos por incitar a greve, lavradores, padres e políticos de oposição eram presos por incitar a subversão da ordem política ou social? Era preciso revogar a Lei de Segurança Nacional. Ela, a lei, precisava ser condenada!

Foi assim que, em 10 de maio de 1983, a Comissão Justiça e Paz de São Paulo encheu o Teatro Municipal de São Paulo para um júri simulado. Com as bênçãos de Dom Paulo Evaristo Arns e com ingressos gratuitos, montou-se um roteiro instigante. O senador licenciado Teotônio Vilela presidiria o júri. Márcio Thomaz Bastos atuaria como promotor. Luiz Eduardo Greenhalgh seria o advogado de defesa. Nascia assim o Tribunal Tiradentes, conforme o nome fantasia criado por Carlito Maia, o mesmo publicitário que, um ano antes, concebera o mote oPTei para o recém-criado Partido dos Trabalhadores e, na década anterior, batizara de Jovem Guarda um ruidoso programa de TV apresentado por um trio de arromba: Roberto, Erasmo e Wanderléia.

O Tribunal Tiradentes não se resumia àquelas participações. Era preciso ouvir as testemunhas. Um painel formado por representantes de diferentes categorias de trabalhadores apresentaria dados e episódios capazes de demonstrar o alcance (e a violência) do regime de exceção, ainda em 1983. Luiz Inácio Lula da Silva, condenado no ano anterior a três anos e meio de prisão por ter feito greve e incitado a desordem, mais de dois anos após a promulgação da Lei da Anistia, seria um deles. Ivan Seixas e Rosalina Santa Cruz, familiares de mortos e desaparecidos políticos, também dariam seus depoimentos. Representando os jornalistas, a fim de relatar as investidas da LSN contra a liberdade de expressão, falaria Hélio Fernandes, dono da Tribuna da Imprensa - falecido no mês passado, aos 100 anos. Discretamente, era tudo observado pelos mentores daquele espetáculo, Margarida Genevois e Marco Antônio Barbosa, presidente e vice-presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo.

A noite avançava sobre o centro de São Paulo quando os sete integrantes do júri começaram a declinar seus votos. Dalmo Dallari, Gilmar Carneiro dos Santos, Antenor Ferrari, Gofredo da Silva Telles, Cândido Padim, Miguel Seabra Fagundes e Hélio Bicudo foram unânimes em condenar a Lei de Segurança Nacional. Por fim, o veredicto foi lido por Teotônio Vilela. Diante dos pronunciamentos que todos vocês ouviram; das testemunhas, dos advogados de defesa e acusação e do conselho de jurados, não tinha por onde fugir: a Lei de Segurança Nacional está condenada, declarou o menestrel das Alagoas. É o próprio povo que agora se pronuncia, ratificando a sentença proferida. E, para fechar um dia que já nasceu histórico: Vamos revogar a Lei de Segurança Nacional! Palmas na plateia, nos camarotes e nas galerias.

Agora, trinta e oito anos depois, é o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, quem se manifesta no sentido de pautar a revogação da Lei de Segurança Nacional para as próximas semanas. Maio, segundo ele. Para a função de relatora foi escolhida a deputada Margarete Coelho, do mesmo PP de Lira. Juristas, incluindo o ministro do STF Alexandre de Moraes, dizem que não se pode revogar a LSN de cabo a rabo sem colocar nada no lugar. Sim, isso está claro. Mas o que deve ser colocado no lugar?

Eliminar a Lei de Segurança Nacional não vai resolver o maior dos problemas, que é a doutrina da segurança nacional, a cultura de guerra psicológica interna que está por trás da animosidade herdada da ditadura e que ainda impera, de certa forma, comentou Lucas Laurentiis, professor de Direito da PUC de Campinas (SP), em debate promovido nesta quarta-feira (14) pelo Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, vinculado ao Instituto de Estudos Avançados da USP. Vejo com muita preocupação esse regime de urgência, porque não tem como a sociedade participar ativamente dessa elaboração em regime remoto, disse Tayara Lemos, professora de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Segundo Tayara, considerando a correlação de forças que opera hoje no Parlamento, o perigo é o novo projeto de lei resultar numa continuidade da Lei de Segurança Nacional, criminalizando os movimentos sociais e beneficiada por uma falsa aparência de democracia, uma vez que aprovada em regime democrático.

O projeto de lei para o qual foi requerida a urgência é o PL 6.764/02, apresentado dezenove anos atrás pelo então ministro da Justiça Miguel Reale Jr. Rigorosamente, o que a peça propõe é que seja acrescentado ao Código Penal um capítulo que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Seria um primeiro passo para a revogação da LSN, embora não se resuma a ela nem mesmo a garanta.

A opção pelo projeto de 2002, elaborado pelo Executivo durante o governo FHC, chama atenção. Mais atual e mais completo, essencialmente com a mesma finalidade, o PL 3.864/20 foi protocolado no ano passado pelo deputado federal Paulo Teixeira. Sua autoria, como exposto na justificativa, é atribuída a um qualificado coletivo de juristas formado por Pedro Estevam Serrano, Lenio Streck, Juarez Tavares, Carol Proner, Marcelo Cattoni, Eugenio Aragão, Juliana Serrano, Fernando Hideo, Jorge Messias e Anderson Bonfim. Ali, resta explicitada a intenção de revogar a Lei de Segurança Nacional, de 1983, ao mesmo tempo em que se instituem instrumentos para a defesa do Estado de Direito e suas instituições. Quem fizer apologia a fato criminoso perpetrado pelo regime militar, por exemplo, será penalizado, assim como quem usar ou ameaçar usar arma de fogo contra a estrutura do Estado Democrático de Direito a fim de causar instabilidade. Valeria, por exemplo, para o cidadão que se propuser a fechar o STF com um cabo e um soldado. Ou ameaçar a sociedade com um novo AI-5.

Curiosamente, ambos os projetos de lei, tanto o de Miguel Reale Jr., de 2002, quanto o de Paulo Teixeira, de 2020, estão apensados a outro PL, bem mais antigo, protocolado em 1991 por Hélio Bicudo, jurista já falecido que atuou no Tribunal Tiradentes, militou por muitos anos no mesmo PT de Paulo Teixeira e, mais recentemente, produziu com Miguel Reale Jr. e Janaína Pascoal o pedido de impeachment que deu sustentação ao afastamento de Dilma Rousseff, em 2016. O PL 2.462/91, de Hélio Bicudo, tem uma ementa inspiradora: ele define os crimes contra o Estado Democrático de Direito e a Humanidade. Ao fim e ao cabo, talvez seja isso o que realmente importa no Brasil de 2021: remover os entulhos autoritários a fim de defender o Estado Democrático de Direito e, acima de tudo e de todos, a humanidade.

fonte: UOL


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