Ativistas seguram uma faixa dizendo “Justiça para Jacarezinho. Fim do massacre nas favelas”, durante um protesto no dia seguinte da operação na favela do Jacarezinho, na qual morreram 28 pessoas, Rio de Janeiro, Brasil, 7 de maio de 2021. © Wilton Junior/Estadão conteúdo (Agencia Estado via AP Images)
(São Paulo, 31 de maio de 2021) – O Procurador-Geral de Justiça do estado do Rio de Janeiro deveria investigar, civil e criminalmente, os comandantes da polícia civil por vários abusos aos direitos humanos durante a operação policial mais letal da história do estado, que resultou em 28 mortes em 6 de maio de 2021, disse hoje a Human Rights Watch.
A operação na comunidade do Jacarezinho resultou na morte de 27 moradores, incluindo um adolescente de 16 anos, e de um policial.
“A operação no Jacarezinho foi um desastre e trouxe muita dor aos familiares dos 28 mortos, incluindo o policial”, disse José Miguel Vivanco, diretor da divisão das Américas da Human Rights Watch. “O Ministério Público do Rio de Janeiro deveria investigar minuciosamente não apenas os policiais civis diretamente envolvidos na incursão, mas também os comandantes que planejaram e ordenaram a ação, garantindo a devida responsabilização pelos abusos e aparente destruição de evidências do local dos fatos.”
A Human Rights Watch examinou registros de ocorrência da polícia, documentos dos hospitais e judiciais, depoimentos de testemunhas e fotos e vídeos de cadáveres. Encontramos evidências críveis de graves abusos de direitos humanos. Várias testemunhas disseram que a polícia executou ao menos três suspeitos; pelo menos quatro detidos disseram que foram agredidos pela polícia; e diversas evidências indicam que os policiais removeram corpos a fim de destruir provas.
Entre outras possíveis violações da legislação, as investigações do Ministério Público devem avaliar se os comandantes da polícia civil que ordenaram a operação cumpriram a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, sob pena de “responsabilização civil e criminal”, proíbe a polícia de realizar operações em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19, exceto em “hipóteses absolutamente excepcionais”.
Os promotores afirmaram que o objetivo da operação era o cumprimento dos mandados de prisão de 21 pessoas que foram denunciadas em abril por associação para o tráfico de drogas. No entanto, a polícia só informou o Ministério Público da operação três horas após o seu início.
As únicas evidências apresentadas na denúncia, analisada pela Human Rights Watch, são imagens postadas em redes sociais que, segundo os promotores, mostram os suspeitos com armas e drogas. A denúncia os descreve como membros do baixo escalão de uma facção.
Embora o STF não tenha especificado quais seriam as “hipóteses absolutamente excepcionais”, não parece razoável que uma operação de alto risco e grande escala, para prender membros do baixo escalão do tráfico de drogas, se enquadre nessa categoria, disse a Human Rights Watch.
Conforme a legislação brasileira, a polícia civil deve investigar se seus integrantes cometeram abusos na operação. No entanto, este sistema não atende aos requisitos necessários para uma investigação criminal independente e imparcial, disse a Human Rights Watch.
O diretor-geral do Departamento Geral de Homicídios da Polícia Civil, unidade encarregada da investigação, disse no dia da operação que “não houve execução”. Ele se pronunciou antes mesmo das declarações iniciais dos policiais aos investigadores da polícia nos registros de ocorrência, analisados pela Human Rights Watch. Posteriormente, o Secretário de Estado de Polícia Civil afirmou que “o Rio está muito mais seguro sem os 27 criminosos neutralizados”, referindo-se às pessoas mortas pela polícia.
Os primeiros passos da investigação pela polícia civil foram lamentavelmente inadequados. Cerca de 200 policiais civis estiveram envolvidos na operação, mas os investigadores da polícia civil só recolheram as declarações de 29 no dia da operação e não os escutaram individualmente, mas em grupos de dois ou mais. As declarações são superficiais e, em muitos casos, com apenas cinco linhas.
Os registros de ocorrência mostram que investigadores da polícia civil apreenderam apenas 26 armas de policiais no dia da operação para análise balística, e mencionam a realização de perícia nos locais de apenas três dos 27 homicídios cometidos pela polícia.
Embora a polícia civil investigue todos os crimes no Brasil, o Ministério Público também pode abrir suas próprias investigações. O Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro anunciou em 11 de maio a criação de uma força-tarefa com quatro promotores para investigar as mortes.
Os promotores deveriam conduzir uma investigação totalmente independente, disse a Human Rights Watch, inclusive com o apoio de peritos criminais independentes da polícia civil que possam conduzir suas próprias análises das evidências. Os promotores deveriam também recolher eles mesmos o depoimento de todas as testemunhas e vítimas, as quais podem, compreensivelmente, temer falar com investigadores da polícia civil sobre abusos cometidos por seus colegas.
O Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania, coordenado pelo Ministério Público Federal (MPF), pediu ao Procurador-Geral de Justiça do Rio que solicitasse o apoio da polícia federal na investigação a fim de garantir sua independência, e pediu o arquivamento do inquérito da polícia civil. O Ministério Público do Rio rejeitou a recomendação.
O Ministério Público do Rio de Janeiro deveria investigar não apenas os policiais ou outras pessoas diretamente envolvidas em crimes cometidos durante a operação, mas também os comandantes da polícia que planejaram e executaram a operação no Jacarezinho, assim como o Secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro, disse a Human Rights Watch. Em particular, os promotores deveriam examinar a possível responsabilidade criminal e civil dos comandantes por ações ou omissões antes, durante e após a operação, incluindo a provável destruição de provas importantes. Além disso, deveriam investigar se os comandantes avaliaram adequadamente os riscos para os policiais envolvidos na operação.
O Ministério Público do Rio disse à Human Rights Watch que abriu um processo investigatório na área civil para apurar a conformidade com a decisão do STF proibindo operações.
O Ministério Público Federal também deveria abrir uma investigação, na área penal, para apurar se os comandantes cometeram o crime de “desobediência” em relação à determinação do STF. O ministro do STF Edson Fachin pediu uma investigação neste sentido em um voto em 21 de maio.
“A polícia precisa garantir a segurança das pessoas, mas, em vez disso, atua com brutalidade e impunidade nas favelas do Rio de Janeiro, fazendo com que os moradores enxerguem os policiais como uma ameaça para eles e seus filhos”, disse Vivanco. “É crucial que o Ministério Público do Rio de Janeiro defenda os direitos da população e o Estado de direito, e busque a responsabilização por quaisquer abusos cometidos, até no alto escalão do comando da polícia.”
Fonte: Human Rights Watch (HRW)