Carlos Augusto Marighella, o Carlinhos, filho único do guerrilheiro Carlos Marighella Imagem: Acervo pessoal
Na cena seguinte, o que se vê é pura calmaria. Um pai ensina o filho a nadar no mar do Flamengo, na Baía de Guanabara. O menino flutua. Estamos em maio de 1964, um mês depois do golpe, um ano e meio antes da inauguração do aterro. O céu de outono não é menos nebuloso do que o horizonte que se divisa na política do país. A bonança precede a tempestade. Alheios ao mundo, pai e filho sorriem, se abraçam. Depois do mergulho, o papo é reto. A hora do encontro é, também, despedida. É preciso que o menino volte a morar um tempo com a mãe, na Bahia. É preciso não ter medo. É preciso ter a coragem de dizer. Um banho de mar como aquele talvez demore a se repetir. Os militares tomaram de assalto a política, ocuparam o Poder Executivo e agora se insurgem contra o Legislativo. As perspectivas não são nada boas. O pai foi cassado - e em breve será também caçado. Seu nome é Carlos Marighella, comunista, deputado federal proscrito pelo Ato Institucional número 1, colega de bancada de Jorge Amado e Luiz Carlos Prestes. Preso político durante o regime ditatorial de Getúlio Vargas, Marighella está de volta à clandestinidade.
O menino é Carlos Augusto Marighella, o Carlinhos, único filho do parlamentar comunista. Intuitivamente, Carlinhos já vira aquele filme. Conhecera o pai somente aos 7 anos. Quando ele nasceu, em maio de 1948, Marighella vivia na clandestinidade. Sua companheira, Elza Sento Sé, fora despachada de volta para Salvador, grávida de cinco meses. O Rio de Janeiro se tornara um lugar hostil para os comunistas e toda cautela era bem-vinda. Prudência e canja de galinha. Por isso Carlinhos nascera na Bahia, como o pai. E por isso foi preciso esperar até 1956, uma rara janela de legalidade decretada por Juscelino Kubitschek, para que Carlinhos viesse morar com o pai no Rio. Agora, em 1964, Marighella precisaria desaparecer novamente. A história também se repete como tragédia.
— Quando a gente vai se ver de novo? — o menino quer saber. — Antes de eu fazer 15 anos?
— Bem antes — o pai promete.
No filme, Carlinhos volta para o carro no colo do pai. Aparenta ter entre 10 e 12 anos e arrisca as primeiras braçadas. Na vida real, Carlinhos completaria 16 naquele mês de maio de 1964. Em background, ouve-se o estampido de um gravador. Testando. Testando. É a voz de Marighella que ecoa na sala de cinema. Carlinhos, você cresceu sem mim. Eu queria tentar te dizer por quê. Na trama, Marighella grava longas mensagens em áudio para, algum dia, enviar os rolos ao filho, na Bahia. Tais fitas nunca existiram. Foram inventadas pelos roteiristas. Quase todo o resto existiu, do jeitinho que aparece em Marighella. Quem afirma é o menino Carlinhos, hoje um advogado aposentado de 73 anos, também ex-deputado (estadual pelo PMDB da Bahia), de uma desconcertante semelhança física com o guerrilheiro mais famoso do Brasil. Carlinhos falou à coluna na terça-feira, 2, de seu apartamento em Salvador. A entrevista foi feita por plataforma de videoconferência. Os principais trechos estão na entrevista a seguir.
Marighella acaba de estrear nos cinemas, após dois anos de espera. Quando você viu o filme?
Eu vi o filme duas vezes. Ele foi exibido aqui em Salvador um pouco antes de ser exibido em Berlim. Nesse dia eu assisti com muito pouca atenção. Cheguei quase na hora e tinha muita gente querendo falar comigo. Me interromperam muitas vezes e eu não consegui assistir ao filme direito. Agora, no dia 27 de outubro, teve uma pré-estreia aqui. O Wagner convidou uma série de pessoas, do movimento negro, e eu próprio convidei algumas pessoas da família e amigos próximos. Aí foi uma experiência completa. Eu me sentei calmamente e assisti ao filme.
Você só o viu depois de pronto?
Só vi pronto. Minha filha (Maria Marighella), que é atriz e faz o papel da minha mãe, a Dona Elza, ela me contava. Mas eu não queria ver o filme. Primeiro porque há uma certa expectativa em relação à família. Esse negócio de ser o filho de Marighella é uma coisa que gera muitas tensões, sempre. E eu não queria de maneira nenhuma parecer que eu havia dado palpite no filme. Claro, Wagner conversou comigo, me entrevistou, e eu fui entrevistado pelo pessoal de roteiro e tudo mais. Essas entrevistas devem ter sido aproveitadas, porque o filho de Marighella aparece bastante no filme, né?
Quando você conheceu seu pai?
Fui conhecê-lo quando eu tinha 7 anos de idade. Porque meu pai some, exatamente com a cassação do mandato dele, em 1948, que foi quando eu nasci. Mas eu sabia, sempre soube que era filho de Marighella, sempre soube que meu pai era uma pessoa especial. E como eu convivia com as famílias de minha mãe e de meu pai, porque os irmãos de meu pai eram vivos e tinham muito carinho por mim, então desde cedo aprendi a gostar desse negócio de ser Marighella e de ter orgulho de ser Marighella. Nem conhecia as façanhas de meu pai. Depois, quando fui amadurecendo mais, entrei no Partido Comunista e fui descobrindo. E essa descoberta de meu pai acontece até hoje. Veja, ele viveu até os 58 anos de idade. Se você exclui dezoito anos - até ele se tornar uma pessoa criada, com vontade própria e podendo exercer essa vontade como quis - sobram quarenta anos entre prisões e fugas.
Quarenta anos muito ativos?
Olha, foram frequentes as invasões da polícia ao local onde meu pai morava; e em cada prisão levavam os livros, levavam as fotos... Meu pai é, de fato, uma pessoa pouco conhecida até para os amigos e familiares próximos a ele, né? Então eu continuo descobrindo meu pai. Esse filme, por incrível que pareça, me permitiu, não digo conhecer aqueles fatos, porque eram todos conhecidos, mas lembrá-los. É como se fosse um gatilho que abriu meus olhos para valorizar coisas que eu já nem lembrava direito. Foi muita emoção.
O filme aborda com relativa profundidade a relação de pai e filho. Tem o banho de mar, logo numa das primeiras cenas, tem a promessa de se encontrar antes do aniversário. É claro que o filme é uma obra de ficção, não um documentário. Mas essas coisas aconteceram?
Aquela criança que tomou banho de mar no Flamengo realmente era eu. E eu me recordo disso. Meu pai era desse tipo, né? O mundo caindo e ele arrumava tempo para se dedicar aos amigos, à família. Eu tenho mil histórias de familiares, de amigos e de pessoas perseguidas que ele pôde botar numa embaixada, arranjar passagem e coisa parecida. Ele de fato era uma pessoa extremamente carinhosa, era o jeito dele, acho que ele era assim com todo mundo. Tem um episódio que é interessante. Meu pai realmente acreditava que ia ter um golpe, ele tinha feito essa leitura. Um dia, em janeiro de 64, ele me chamou: Olha, você vai para a Bahia. Eu passava as férias com a minha mãe na Bahia. Você vai para a Bahia e, quando você voltar, você vai estudar este ano num colégio interno. É uma escola avançada, você vai poder sair e ir pra casa na hora que você quiser. Mas você vai ter roupa na escola, você vai ter comida. Eu queria entender direito a razão daquilo e ele me disse: Porque a possibilidade de acontecer alguma coisa e sair do controle é muito grande. Ele estava se referindo ao golpe militar, ou seja, ele além de verbalizar isso e discutir o assunto nas reuniões no Partido Comunista, ele tomou as decisões pessoais dele, né? Cuidar da família dele, colocar o filho numa escola adequada. Só que o plano dele furou.
Por quê?
Porque na escola, quando finalmente meu pai é baleado, em maio de 64, e aparece aquela foto dele em todos os grandes jornais, Jornal do Brasil, Globo, Correio da Manhã (Marighella foi alvejado à queima roupa por um policial dentro de um cinema na Tijuca), então todos os meus colegas perceberam. Primeiro, porque sempre tive uma semelhança física muito grande, e depois o nome. Para piorar, o diretor da escola era um general da reserva. Ele me botou para fora da escola com solenidade, na frente de todo mundo. Fez um discurso dizendo que não podia aceitar o filho de um subversivo naquela escola.
Uma perseguição institucionalizada não apenas contra os militantes, mas também contra os filhos dos militantes?
A escola era o Colégio Batista, na Tijuca. Era um colégio de gente grã-fina e tal. E eu fui expulso. Foi um drama terrível, porque o diretor comunicou a mim, não chamou ninguém, não me perguntou se eu tinha mãe, pai, amigo. O plano do meu pai furou. Todo acolhimento que ele imaginava que eu ia ter ali, ele pagou a escola antecipadamente e tudo. Pois bem, e eu pirei, né? Os meus amigos todos se afastaram de mim porque eu era filho de um subversivo. Não que eles quisessem, mas as mães morriam de medo de que os filhos andassem comigo e fossem sofrer retaliações, porque o discurso de ódio era muito forte naquele momento. E eu não tinha roupa, porque a polícia tinha invadido nosso apartamento em abril e levado tudo. Foi assim que eu tomei conhecimento de que meu pai estava sendo procurado. Fui para o apartamento e, quando cheguei na porta do prédio, vi que a polícia estava lá, e o porteiro fez aquele sinalzinho com a mão, como se dissesse: Não para, vá andando. Eu voltei para a escola e correu tudo bem de abril até maio. Mas aí meu pai é baleado e todo mundo toma conhecimento que tinha um Marighella subversivo preso. Aí a casa caiu. Fui resgatado na escola por uma tia. Fiquei na escola esperando que alguém me tirasse de lá. E eles me toleraram. Procure para onde ir.
Então você voltou para a Bahia aos 15 anos?
Aos 16 anos. Quando a escola deu as férias escolares e a minha tia já tinha me resgatado, vim para a Bahia. Aqui na Bahia tinha a minha mãe e a família de meu pai. Minha mãe era um figura fantástica, adorava meu pai. Eu me lembro que escrevi uma carta para ela, pedindo a ela que não fosse para o Rio. Eu tinha muito medo. Primeiro porque minha mãe era explosiva, muito atirada. E segundo porque ela corria risco. Mas até ela receber a carta, aquela situação se resolveu e eu voltei para a Bahia. E aí tudo aquilo, né? Eu passei a ser o célebre filho de um subversivo também na Bahia. Nunca mais pude ver pessoalmente o meu pai. Falava com ele, às vezes, por telefone. Como entrei no Partido Comunista, então eu tinha canais de contatos com ele para trocar cartas e, às vezes, telefonar para ele.
Teu pai gravava fitas para você, como aparece no filme?
Não, isso não. Ele falou comigo algumas vezes (por telefone). Aquele discurso de pai, estude etc.
Respeite as meninas.
Respeite as meninas existiu, mas de outra maneira (risos). Na minha geração, havia um quê de conservadorismo dos pais, seja eles quais fossem, né? E o meu pai uma vez se senta comigo, em tom professoral, com o livro de Fritz Kahn (o livro citado é o Nossa vida sexual, célebre no Brasil nos anos 1940), que era um professor que ensinava sobre sexo. Era um livro bonito, cheio de ilustrações, com fotos de pênis, vagina, explicando a concepção, e aquela coisa toda. E o meu pai com esse livro debaixo do braço, eu com meus 13 anos, aí ele dizia assim: O que você sabe sobre sexo?. E eu: Muito pouco. Tudo mentira. Porque o Rio de Janeiro era uma grande escola de descobertas sexuais, está entendendo? Para mim, foi uma grande surpresa sair da Bahia e vir para o Rio de Janeiro. O Rio era uma cidade totalmente cosmopolita, avançadíssima, se falava tudo, então era fácil arranjar namorada, trocar de namorada. Então eu já tinha uma razoável ideia do que era o tal sexo. Aí meu pai me explica que tinha que ter cuidado com as meninas. Foi muito engraçada essa conversa com o meu pai. Mas uma coisa eu aprendi com ele, e me marcou. Ele era peremptoriamente contra ter relações com prostitutas. Ele dizia: Olha, as prostitutas, meu filho, elas são como se fossem nossas irmãs, a gente não pode pagar por sexo, de jeito nenhum. Aí eu botei aquilo na cabeça. Era um compromisso de pai e filho. Volto para a Bahia, todos os meus amigos frequentando o puteiro e eu cheio de dedos ali. Eu não podia trair uma promessa feita ao meu pai. Então era muito engraçado isso. Se eu ia ao puteiro com meus amigos, as mulheres se aproximavam de mim e eu muita conversa, muito samba, mas ação nenhuma. Tive que enfrentar essa saia justa com meus amigos, não foi tão simples. Você veja onde é que um pai comunista bota um filho.
E havia a polarização. Imagino que, no seu círculo de amigos, alguns apoiavam a ditadura.
Sim, com certeza
E você era filho do inimigo público número um.
Eu vivi isso intensamente. De certa forma, vivo até hoje. Se eu entro nas redes sociais, sempre ouço desaforos. Mas eu vivi isso, realmente. Eu tinha inimigos, gente que eu nem conhecia e que verbalizava ódio por mim. Assim como tinha, também, amigos ocultos. Aliás, muito mais amigos ocultos do que inimigos declarados. Porque meu pai era uma pessoa respeitada. Ele não era só respeitado porque se contrapôs às ditaduras, mas por ter uma trajetória de vida incrível. Estudante, as escolhas que ele fez, as qualidades pessoais. Marighella fazia prova em versos, todo mundo fala sobre o desempenho escolar dele. Muita gente deplorava ou se contrapunha ao comunismo, às ideias que ele defendia, e o admirava. No fundo, comunista é como foram qualificadas pessoas que lutaram contra todas as formas de opressão. Além das lutas pelo país, pela emancipação do Brasil e pelo desenvolvimento, pela defesa de direitos sociais importantes e tudo mais, comunista era também quem levou o Brasil a lutar contra o nazi-fascismo. Foi isso, afinal, que elegeu aquela bancada fantástica de comunistas (em 1945), com Prestes, Jorge Amado e Claudino Silva, um dos primeiros negros a pisar na Câmara dos Deputados. Agora, óbvio, para os militares, o fato de ele ter proclamado a necessidade de se contrapor ao golpe militar pela força, aquilo ali foi... impôs respeito, porque as pessoas também têm respeito pelos seus inimigos, né?
Você falou das redes sociais, da oposição que você enfrenta ainda hoje. Você vê semelhanças entre o momento que a gente vive agora e aquele período?
Não tenho nenhuma dúvida quanto às semelhanças. Eu sou testemunha, eu vivi intensamente isso. Meu pai morava num quarto-e-sala no Flamengo (com o filho e a companheira, Clara Charf), mas nesse apartamento havia mais de três mil livros. E meu pai me passava uma renca de livros para eu ler, Julio Verne, Jorge Amado. Eu lia frequentemente, mas não tinha uma formação política naquela época. Eu tinha todas as razões para odiar os que maltratavam meu pai, mas nunca tinha convertido essa ideia numa expectativa de militância política. Só mais tarde fui entrar no Partido Comunista, aqui na Bahia, quando a ditadura já caminhava para seu final. Foi nesse momento que eu passei a entender melhor o golpe, as razões para que ele tenha acontecido. Se você pegar a história, você vai ver que a gente continua vivendo a mesma situação pendular que a gente vivia no passado. Em 64 nós tínhamos um partido trabalhista com um discurso a favor dos operários, dos trabalhadores, querendo desenvolver o país. Era o João Goulart, que se tornou um líder incrível, porque ele lá fez o Bolsa Família dele, aumentou o salário-mínimo em 100%, e isso se mostrou uma decisão acertada, porque trouxe para a sociedade uma população que consumia, enfim. Aí deram o golpe, que foi um enorme retrocesso. É incrível que sempre se reúnam exatamente para cancelar essas conquistas. Aconteceu naquela época e aconteceu agora. Mesmo antes do golpe, meu pai nunca pôde ser candidato. Comunista não tinha legenda (salvo em raros intervalos de legalidade, como em 1945). E um nome como ele, com a liderança que ele tinha, não podia ser candidato por outro partido. Entretanto, a gente dizia assim: O país é democrático. Não era democrático. A gente tinha uma democracia racionada. E a descrição do país que a gente vivia naquela época, ela cabe hoje.
Não avançamos em nada?
Nós temos institucionalmente um país mais avançado, tanto que a gente não descambou para um golpe. Não só porque há setores da sociedade brasileira resistentes a uma aventura dessas, mas também porque eles não têm apoio internacional para tomar uma medida dessa envergadura. Mas, sinceramente, eu acho que a gente vive essa situação pendular. O Brasil precisa decidir realmente como é que quer construir seu futuro: a gente vai ter uma democracia de verdade, respeitando os parâmetros, a regra do jogo? Não importa que a pessoa seja de direita ou de esquerda, ela não pode se eleger e mudar as regras para impedir que a população tenha acesso às informações, para interromper o funcionamento do judiciário, calar a imprensa... Fazer com que essas instituições funcionem e se aperfeiçoem tem que ser uma decisão da sociedade. Nós não podemos viver desses pequenos sobressaltos e golpes. Depõe a presidente, prende o candidato que tem potencial para ganhar a eleição... E a gente continua vivendo isso, exatamente como em 64.
O assassinato do seu pai completa cinquenta e dois anos neste 4 de novembro. Como Marighella reagiria aos tempos atuais? Como ele se portaria no Brasil de 2021?
Há muita atualidade naquilo que ele pensava, naquilo que ele escrevia, nas coisas que ele fazia. Não é à toa que Marighella vira cinema. Mas, antes de virar cinema, a população jovem, sobretudo, já conhecia Marighella. Marighella está presente nas palavras de ordem, em todo canto tem um Marighella Vive. Se é certo esse raciocínio que a gente vive hoje uma repetição desse ciclo pendular que o Brasil vive politicamente por décadas, então as coisas que ele pensou e a luta que ele empreendeu, elas servem, se encaixam perfeitamente agora. Eu acho Marighella atualíssimo. Assim como acho que esse filme vai revelar essa atualidade de um modo muito intenso, porque é uma grande oportunidade de levantar esse véu de maldição e silêncio sobre ele. Marighella não pode ser visto, não pode ser ouvido, não se pode falar de Marighella e não se pode difundir o que ele pensava e dizia para a população.
Você conheceu seu pai aos 7 anos, conviveu com ele até os 15, e nunca mais o encontrou, até a morte dele, quando você tinha 21. Podemos dizer que você foi privado do convívio com ele durante um terço do tempo. Isso nos remete às renúncias e à dualidade entre vida privada e militância política. Você percebe efeitos disso na sua vida pessoal?
Eu acho que meu pai, minha mãe e minhas famílias, a paterna e a materna, tomaram muitas medidas para que eu não sofresse. É claro que houve percalços. Eu me lembro que eu chegava na escola com 7, 8 anos de idade, e a professora me dizia assim: Amanhã você tem que me trazer a sua certidão de nascimento. Eu não tive certidão de nascimento até os 8 anos. Eu era o único menino na escola que não tinha certidão de nascimento, e todo mundo olhava para mim. Naquela idade, eu não me dava conta, achava que era uma negligência de minha mãe ou alguma coisa assim. E quando eu chegava em casa e dizia pela enésima vez que a professora tinha cobrado um documento que eu não tinha, minha mãe sofria, se debulhava em prantos. E eu não entendia. Provavelmente, minha mãe se recusava a me registrar sem a presença do meu pai (que estava na clandestinidade). Porque, até 1955, naquela democracia de araque, havia uma ordem de prisão contra todos os comunistas. Meu pai não podia se candidatar e também não podia ter uma vida regular, não podia viver com o filho dele, não podia ir a um cartório registrar o filho, porque corria risco de prisão. E minha mãe tinha muito respeito e carinho pelo meu pai, então ela não queria ter um registro que pudesse parecer que ela tinha vergonha do pai que ela escolheu para o filho dela, entende? Provavelmente ela foi se explicar com a diretora da escola. E quando, finalmente, eu pude ir ao Rio conhecer meu pai, em 1955, depois que Juscelino afirmou que não iria permitir que os membros do Partido Comunista fossem presos, ele correu para providenciar a minha certidão. Naquele dia, todo mundo em casa vibrou quando ele mostrou o documento para minha avó e minhas tias. Parecia jogo do Brasil, só faltou soltar foguete. Todo mundo queria segurar a certidão. Se abraçavam e se beijavam e tal. Era uma coisa que havia incomodado toda a família durante sete ou oito anos. E meu pai, como sempre, dando risada. Mas eu não tenho memória de ter sofrido. Acho que fui muito acolhido pelos meus familiares, pelos tios, irmãos de meu pai, carinhosos o tempo todo. Acho que isso me deu força para enfrentar ou superar a maledicência e as perseguições, as ocultas e as conhecidas. Uma vez eu fui a um médico, ele era militar. Cheguei lá, com 11 ou 12 anos, e ele se interessou pelo meu nome. Marighella, de onde vem esse nome?. Eu contei que era do meu avô italiano. E quem é seu pai? Carlos Marighella, eu respondi. Aí ele falou baixinho: Seria aquele ex-deputado comunista? Sim, é esse. E eu feliz da vida, orgulhoso. Aí ele se levanta, pega na estante um livro escrito por ele, faz uma dedicatória para mim e me dá de presente. Era um negócio ultradireitista, escrito por um golpista de primeira ordem, orgulhoso por ter afastado a ameaça comunista da Bahia, no qual ele contava sua vida, toda dedicada à luta contra o comunismo (risos). Era um inimigo de meu pai, que me tratou muito respeitosamente e não falou mal de meu pai. Mas, no livro, ele desancava todos os comunistas, inclusive meu pai. Essas coisas eram muito frequentes, tanto ouvir desaforos quanto ser acolhido de uma maneira surpreendente por pessoas que eu nunca tinha visto na vida.
Você é, de fato, muito parecido fisicamente com seu pai. No filme, o primeiro ator cogitado para interpretá-lo foi o Mano Brown, mas quem acabou fazendo foi o Seu Jorge. A decisão acabou por incorporar ao filme outro debate, sobre o colorismo, e contribuiu para visibilizar a origem negra de Marighella e filiá-lo, de certa forma, à linhagem de Luís Gama, Zumbi, Malcom X. Essa emergência da questão racial lhe parece positiva?
A questão da negritude não tinha na luta política a importância que tem hoje. Meu pai, se você pega os poemas dele, ele tinha uma predileção por Castro Alves e foi muito inspirado por ele. E ele tinha muita consciência de sua origem e muito orgulho de proclamar essa negritude. Descendo de hauçás, ele dizia. Então, eu acho que foi perfeita a escolha. Mano Brown vinha conquistando o público jovem negro de periferia com música, gravou uma música linda em homenagem ao Marighella (Mil faces de um homem leal), então eu torcia para que fosse ele, porque entendia que havia uma maior integração do trabalho dele com o personagem, e isso ia projetá-lo mais ainda e dar mais visibilidade ao Marighella. Mas Seu Jorge faz um trabalho de qualidade indiscutível. Wagner Moura e os outros atores se apaixonaram pelo personagem, isso é visível. E acho que essa vinculação de Marighella com a negritude favorece essa atualidade. Acho que cabe. E que o filme vai ajudar muitíssimo.
Quando você diz que o filme vai ajudar, ele vai ajudar o quê?
Eu quero, eu mereço que essa reparação em relação ao meu pai aconteça, que ela se torne efetiva. Não posso aceitar que meu pai seja apresentado sempre como um criminoso, uma pessoa de quem os brasileiros não podem ter orgulho, porque é exatamente o oposto, né? E eu acho que esse filme vai alavancar essa percepção. Marighella está vivo, a música de Caetano diz isso. Logo depois da prisão (em 1964), ele vai em todos os jornais, tira a camisa, mostra o buraco da bala, denuncia a ditadura. Ele é incrível, uma figura fantástica. Nós temos pessoas maravilhosas, homens e mulheres que lutaram, não fraquejaram, não hesitaram. Marighella é um deles. Ele queria ser um dos milhões de brasileiros que resistiram. Esse filme, essa emoção toda, vai prestar um grande serviço no sentido de remover esse silêncio. Foi Jorge Amado que escreveu: Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella.
por Camilo Vannuchi
Fonte: UOL