Com o elogio da tortura e a reverência a seu principal praticante na ditadura, o general Hamilton Mourão, vice-presidente desta ofendida e resignada República, trouxe novamente à tona essa história de terror, assassinatos e desaparecimentos de pessoas que permanece insepulta. O coronel Brilhante Ustra foi um agente da morte e do Estado que cometeu crimes imprescritíveis. Chamá-lo de um homem honrado que respeitou os direitos humanos “constrange a Nação e desonra as Forças Armadas”. E, sobretudo, agride a dignidade e a memória dos que padecerem em suas mãos, como denunciou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns.
Faço parte de uma geração que envelheceu com essas marcas no corpo e na alma. Talvez a primeira na história que tenha passado, em seu conjunto, por uma experiência desta magnitude na pátria amada e torturada Brasil. Centenas de jovens que um dia, no início dos anos 70, foram levados para quartéis militares com um capuz enfiado na cabeça. Enfrentaram a nudez e a solidão de uma sala onde não havia lei muito menos honra. Foram chantageados e torturados por homens fardados, empregados do Estado, que manejavam máquinas, fios, cavaletes, seus coturnos e outros instrumentos soturnos para provocar dor e obter uma confissão. Os “honrados” capatazes da família Ustra. Registro que não vi nem tive notícia de nenhuma mulher entre os seus integrantes.
Os que sobreviveram, envelhecemos. Enlouqueceram alguns, o alcoolismo perturbou a vida de outros. Houve os que se mataram. Alguns morreram precocemente de câncer, enfrentaram o mal pelo Parkinson, o Alzheimer e um variado cortejo de sequelas e desajustes que incluem os amorosos, afetivos e filiais, na conturbada relação pais e filhos. Foram buscar apoio no consultório de um psicanalista.
Envelhecemos sim, mas não a ponto de esquecer que um dia entramos de capuz num dos Doicodis da vida e tivemos um Ustra pela frente. Ora, Mourão, cinismo não combina com verdade e História. Ustra e seu exército macabro violaram as leis e merecem repúdio. Tortura é crime inafiançável.
Num angustiado ensaio escrito em meio ao espanto e à indignação provocados pela revelação dos porões da guerra da Argélia, Sartre advertiu que “a tortura não é civil nem militar, nem tampouco especificamente francesa, mas uma praga que infecta toda nossa era”. Naquele momento, entre l957 e 1958, os franceses tomaram conhecimento de que o Exército francês e as forças policiais da colônia empregaram sistematicamente a tortura no enfrentamento aos rebeldes argelinos. Houve uma comoção. A França levantou-se, indignada.
Não tivemos no Brasil essa comoção, um movimento de repúdio à praga da tortura, porque não se deu à opinião pública informações sobre a profundidade da infecção. A sociedade transitou da ditadura para a democracia mantendo em seus postos no executivo, legislativo e nas Forças Armadas os responsáveis o pelo regime de arbítrio, com a colaboração da imprensa, que silenciou e não assumiu suas responsabilidades. As bandeiras de denúncia, os cartazes com os mortos e desaparecidos, o grito de Tortura Nunca Mais, ficaram nas mãos de entidades de anistia, mães, avós, filhos e netos. A sociedade não discutiu o alcance da tortura, não passou a limpo a História. Por isso, a repete.
A família Ustra no trabalho
Cena 1 ‒ Durante os primeiros dias, Juliano viveu numa espécie de estado de coma permanente, como se estivesse numa Unidade de Tratamento Intensivo, torturado sem trégua o tempo todo. Perdeu os sentidos em diversos momentos, pensou que fosse morrer. Conheceu a perversão da tortura em seus mínimos detalhes. Viu despejarem baldes de água em seu corpo dependurado para aplicação de choques elétricos. E descobriu que havia uma sofisticação metodológica na aplicação dos choques.
Um dos fios desencampados preso no dente e o outro amarrado no saco era o preferido do tenente Correia Lima. Mas havia uma modalidade pior, defendida pelo capitão Duque Estrada. Com os fios amarrados nos dois mindinhos, o choque é mais intenso, corre o corpo inteiro, ensinava o especialista em comportamento humano. Tinha razão o filho da puta. A descarga elétrica de mais de 100 volts transita instantaneamente por todos os nervos do corpo, dos pés à cabeça, provocando uma contração violenta e dolorosa.
Cena 2 ‒ O capítão Gomes Carneiro despacha a testemunha. Apertando um lábio contra o outro, dá um soco na mesa, impaciente. Cobra de Santiago um nome, que ele volta a negar. Com a voz trêmula, explica que não sabia os nomes dos caras que ficaram em sua casa. Todos clandestinos. O capitão vira-se para um tenente da equipe e determina: “Traga a suíte quebra nozes! Vamos partir para os choques”.
O estudante tremeu. O capitão deu uma gargalhada. “Vou te dar uma chance.” Puxou um maço de cigarros do bolso da camisa. Um maço vermelho, com tarjas em azul e branco, símbolo da aventura e do sucesso nos comerciais da década de 70. O tenente se adiantou para acender o Hollywood do chefe, que aspirou com vontade a fumaça da primeira tragada. E disse em tom de intimidação: “Assim que eu acabar de fumar este cigarro, você vai me revelar o paradeiro desse sargento que dormiu em sua casa. Ou volta para a porrada, te devolvo pro Zamith”.
Santiago viu o cigarro queimar lentamente entre os dedos do oficial, a fumaça se espalhar em círculos em torno da mesa. Tentou entender que espécie de homem tinha à sua frente. De repente, beirou o absurdo ao desejar que o cigarro daquele filho da puta tivesse filtro. Pelo menos ia demorar um pouco mais para chegar ao fim.
Cena 3 ‒ Nas madrugadas em que não tinham o que fazer, os oficiais divertiam-se com as prisioneiras. São machões, sádicos e misóginos. Chamam uma a uma para conversar, às vezes juntam duas ou até mais, formam um grupo. Numa noite, o capitão de cavalaria João Gomes Carneiro reclamou de Mariana, de seus gritos exagerados quando ela estava dependurada. Queria silêncio. Depois repreendeu e xingou Maruza, que não o avisou de que estava menstruada. Restos de sangue que ficaram na cadeira onde ela foi interrogada mancharam a capa do major de cabelos ruivos. Na fronteira de um mundo violento e sem lei, onde torturam e matam, ele se preocupa em preservar sua limpeza. Precisa sair limpo e imaculado para o jantar em casa com a família.
Cena 4 ‒ Novamente só neste cárcere, esfrego a mão sobre os olhos como se precisasse acordar, e sinto o tecido dolorido e inchado. Eis que de novo me sobressalto com o barulho do ferrolho da porta sendo retirado. São várias as vozes que ouço agora, vozes diferentes que determinam a colocação do capuz, que me empurram. Pressinto que esta não é uma visita de rotina, pode ser que agora o mistério se resolva. Uma voz mais forte, uma voz de comandante desta nave espacial, determina que levantem o meu capuz e eu me vejo frente a um homem alto e forte, de ombros largos, lábios grossos, que me olha com a autossatisfação de me ter sob seu inteiro domínio, tendo a seu lado uma meia dúzia de professores-torturadores subalternos.
Ele move zombeteiramente os lábios grossos e pergunta, apontando para os meus olhos: “O que fizeram com este rapaz?” É ele mesmo que responde, já completando o sorriso sarcástico: “Ah, já sei, foi um Fenemê que passou sobre sua cabeça”. E o Fenemê faz uma rápida manobra, engrena uma primeira e segue com o seu sorriso zombeteiro, com seu poder absoluto, à procura de novas mutilações. O atropelado no caso sou eu mesmo e o homem-Fenemê é o general Adir Fiúza de Castro, então comandante do Codi, integrante da honrada família do coronel Brilhante Ustra. Os trechos em itálico foram tirados de meu livro Estação Doicodi, inédito.
por Álvaro Caldas