*Texto publicado originalmente no site Brasil 247, escrito por Flávio de Leão Bastos Pereira, professor da Mackenzie e conselheiro do Núcleo Memória
Neste final de semana os Ministros de Estado da Justiça, Flávio Dino e dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, estiveram presentes em Santiago após convite pelo presidente chileno Gabriel Boric para o encontro internacional em alusão aos 50 anos do golpe de Estado de 1973, concebido pelos militares chilenos, com apoio da CIA e dos governos dos Estados Unidos da América e do Brasil (sobre o apoio do regime militar ditatorial brasileiro ao golpe ocorrido no Chile em 1973, conferir o brilhante documentário de Camilo Tavares, “O Grande Irmão”).
Os representantes do Estado brasileiro visitaram o Museo de La Memoria y Derechos Humanos, localizado na capital chilena.
O Ministro da Justiça, ao se pronunciar, afirmou que o Brasil terá também o seu Museu da Memória e dos Direitos Humanos.
A afirmação deve ser celebrada, uma vez que após quatro anos de um governo negacionista da história de violações aos direitos humanos sistematizada pelo regime ditatorial de 1964, o comprometimento apresentado pelos Ministros constitui um feixe de esperança para milhares de brasileiras/os que vêm lutando há muitos anos pela criação de memoriais relativos a uma das mais duradouras e violentas ditaduras do Cone Sul, durante a guerra-fria.
É alentador sabermos que o Ministério da Justiça financiará a criação do mencionado memorial, tal como expressado pelo Ministro da Justiça.
Contudo, é preciso ressaltar que lutas antigas vêm sendo corajosamente travadas há anos pelos sobreviventes, pelos familiares de mortos e desaparecidos, bem como por Universidades e especialistas de distintas áreas do conhecimento, para que importantes locais de memória sejam criados e ofertados com centros de homenagem à memória das vítimas; para o desenvolvimento de pesquisas; para o reencontro da sociedade brasileira com sua própria história e identidade.
Na maioria dos casos, sem muito apoio de instituições, públicas ou privadas.
A persistência, a competência e os resultados produzidos por referidos grupos da sociedade civil organizada, com essencial apoio dos Ministérios Públicos Estadual, Federal, de Universidades como UNICAMP, UNIFESP e UFMG, além de entidades não-governamentais como o Núcleo de Preservação da Memória Política de São Paulo (NM) e da OAB/SP, vêm mostrando ao mundo que no Brasil também há muita luta pela memória histórica.
Podemos mencionar alguns exemplos importantes: a Casa da Morte, em Petrópolis; o Memorial da Resistência (antigo DOPS), hoje conceituado e visitado diariamente por escolas, Universidades, especialistas, sede de importantes encontros e eventos etc.; o futuro Memorial da Luta Pela Justiça (local dos antigos julgamentos do regime ditatorial pelas auditorias militares em São Paulo), resultado de parceria entre a OAB/SP e o Núcleo Memória; e, ainda, o caso da antiga sede do DOI-CODI de São Paulo, o mais terrível e mortal centro de sequestro, tortura e extermínio do regime de exceção, modelo concebido, desenvolvido e exportado para todo o Brasil e por onde passaram cerca de sete mil vítimas.
O caso do antigo DOI-CODI é atualmente objeto de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em face do governo do Estado, à qual aderiu o Núcleo Memória de São Paulo como litisconsorte ativo e a OAB/SP e Centro Santo Dias de Direitos Humanos, como amici curiae.
Infelizmente, conforme noticia a imprensa, a gestão do atual governador do Estado de São Paulo, capitaneada por sua Secretária Estadual de Cultura, é contrária à criação de um memorial naquele que pode ser considerado o principal local de memória do regime ditatorial militar (https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/09/10/governo-tarcisio-resiste-em-transfor ar-doi-codi-em-memorial.ghtml).
Um dos argumentos apresentados pela Secretária diz respeito ao fato de que a cidade já possui o Memorial da Resistência de São Paulo e que também remete ao período ditatorial, argumento que surpreende, não apenas porque o Memorial da Resistência representa períodos históricos outros, que não apenas o regime de exceção de 1964 (embora lá tenha atuado o torturador Delegado Fleury), mas também porque no local do antigo DOI-CODI ocorreram fatos importantíssimos para nossa história, ainda desconhecidos da sociedade brasileira.
Vale dizer: o direito da sociedade brasileira em ter acesso à sua história, sua cultura e sua identidade, tal como garantido pela Constituição Federal de 1988, permanece bloqueado por decisão de uma gestão.
Os locais de memória não se excluem, como demonstram a experiência chilena, argentina ou alemã, mas se complementam. A história precisa ser conhecida e objeto de reflexão crítica, por inteiro.
Cabe ressaltar que recentes escavações realizadas no antigo DOI-CODI de São Paulo por equipes muito competentes de arqueologia da UNICAMP, UNIFESP e UFMG, encontraram materialidade que reforçam os crimes contra a humanidade cometidos no local, como inscrições em paredes, dentre outros materiais, ainda sob análise laboratorial, por especialistas. Até objetos indígenas, foram encontrados.
As escavações somente não foram adiante pois o financiamento atingiu seu limite. Não fossem as Universidades públicas, nada teria ocorrido. Em cerca de quatorze dias, em torno de novecentas pessoas foram conhecer o local e acompanhar os trabalhos de escavação. Também mensalmente, o Núcleo Memória organiza visitas mediadas no local, normalmente lotadas, o que demonstra que a sociedade brasileira deseja conhecer seu passado e compreender, assim, seu presente.
O Grupo de Trabalho do DOI-CODI (GT DOI-CODI), coordenado pela historiadora Deborah Neves e que reúne o conjunto de vítimas, familiares, especialistas e Universidades acima mencionados, vem trabalhando há muitos anos para que tenhamos, no futuro, um dos mais importantes memoriais relacionados ao período ditatorial militar, entregue para a sociedade brasileira.
Registre-se que o tombamento se deu em 2014 a partir do pedido formalizado por Ivan Seixas (sobrevivente do centro de tortura e morte e onde seu pai foi assassinado, além das torturas impostas a ele e sua família), com rico material desenvolvido pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva, sob a presidência do Deputado Estadual Adriano Diogo, também sobrevivente do DOI-CODI.
Assim, a declaração do Ministro da Justiça deve ser vista com esperança, mas o governo federal não deve se omitir no apoio necessário às lutas, antigas, que vêm já sendo travadas há tempos pela efetivação dos locais de memória por grandes brasileiros, profissionais e universidades.