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NÚCLEO MEMÓRIA

Direitos humanos |   Os áudios do STM e a luta por verdade, justiça e memória no Brasil

Prédio do Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília. Crédito: Flickr CNJ

Muito embora o tema aqui proposto envolva outra temática e relacionada à ditadura militar instaurada por golpe de Estado contra o governo de João Goulart, eleito legítima e democraticamente, os assuntos envolvem clara conexão, uma vez que a negação do Estado brasileiro e suas autoridades em enfrentar o passado sob o qual a nação esteve sob o regime de exceção e do terror, operacionalizado por estruturas como o DOI-Codi, DOPS, Cenimar, dentre outros, além de privar o povo brasileiro e as novas gerações do direito de acesso à verdade histórica que lhe cabe por determinação moral e também legal-constitucional, contribui para que o contexto de alienação da realidade pela sociedade seja mantido e agravado.

Nega-se o direito de acesso à própria cultura e identidade; o direito à memória coletiva e à Justiça.

Ao privar o povo brasileiro do conhecimento sobre seu passado a partir de distintas e democráticas fontes, além daquelas consideradas oficiais, normalmente trancafiadas por décadas, impede-se a população de compreender sua própria realidade, seu entorno, o legado que diariamente suporta a partir das estruturas opressivas, violentas, racistas e aporofóbicas advindas da repressão e seus ideários.

Neste sentido, a população perde a capacidade de identificar as raízes de mazelas contemporâneas da sociedade brasileira, como, por exemplo, a sistemática violação das cenas de crimes, por agentes do Estado, hoje comum e que tem sua origem nos chamados “teatros” que os agentes do DOI-Codi montavam para justificar o assassinato de pessoas presas políticas.

“…Fazia o cirquinho e o jornal publicava que eles tinham sido mortos num tiroteio…”, conforme explicou a tenente Neuza, uma ex-agente do DOI-Codi, ao jornalista Marcelo Godoy em sua histórica obra “A Casa da Vovó – Uma Biografia do DOI-Codi (1969-1991), o Centro de Sequestro, Tortura e Morte da Ditadura Militar” (Ed. Alameda, 2014, p. 298).

O conhecimento do passado permite a quem o controla impor um futuro segundo sua vontade, legando às futuras gerações a reiteração das dinâmicas de violência, discriminação e violações que favorecem a corrosão democrática, na medida em que não são compreendidos os sentidos e significados que exsurgem da verdade histórica e da memória coletiva.

Ao não se conhecer a verdade e a memória, não se realiza justiça, tampouco a sociedade é pacificada, e o regime democrático se torna frágil e permeável a mensagens antigas e arriscadas, mas desconhecidas das novas gerações.

A divulgação de áudios gravados durante as sessões do Superior Tribunal Militar (STM), realizadas ainda sob o regime de exceção, constitui prova cabal sobre o conhecimento, pelo Estado brasileiro e suas autoridades, da utilização sistemática da tortura, do sequestro, das violações sobre mulheres gestantes, por agentes componentes das estruturas repressivas da época, financiada por empresários.

Os áudios divulgados pela imprensa e acima citados possuem outro grande valor histórico: são oriundos de fontes oficiais, da própria Justiça Militar, assim como ocorreu com o importante projeto “Brasil Nunca Mais”, encetado pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo, fruto de pesquisa realizada sobre 850 mil páginas de processos do mesmo Superior Tribunal Militar e que resultou na publicação de históricos relatório e livro, no ano de 1985. Tal relatório choca pelo grau de violência e pela sistematização das violações aos direitos humanos promovidas pela repressão política durante a ditadura militar.

Os áudios das sessões do STM revelam em torno de 10 mil horas de gravação de diálogos e debates entre ministros do Superior Tribunal Militar. O material é objeto de pesquisa do professor e historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele teve acesso aos áudios – até então secretos – em 2011, quando o advogado Fernando Augusto Fernandes obteve decisão no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) para que as gravações fossem divulgadas.

Diante da revelação do conteúdo dos áudios no último fim de semana, o Brasil assistiu à reação irônica e desrespeitosa do vice-presidente da República sobre um passado que ainda gera consequências.

Os questionamentos então apresentados nesta data, pela mencionada autoridade, possuem respostas já fartamente conhecidas. Famílias ainda buscam localizar os restos mortais de seus entes queridos (filhos, pais, mães, irmãos etc.); os desaparecimentos constituem crimes ainda em curso, uma vez que se protraem no tempo e tipificam crimes contra a humanidade, imprescritíveis e cujo processamento e punição é obrigação do Estado brasileiro, por imperativo jurídico constitucional e internacional.

Torturadores, perpetradores e aqueles que ocuparam as cadeias de comando, ainda vivos, deveriam ser levados aos tribunais, como constituem exemplos mundialmente reconhecidos os casos da Argentina, Chile, Uruguai, África do Sul, Ruanda, Bósnia, Alemanha etc.

Iniciativas também existem no Brasil, ainda que não tenhamos – e talvez jamais consigamos – efetivar todas as fases da Justiça de Transição, como seria desejável.

Porém, profissionais (como arqueólogas/os, antropólogas/os, historiadoras/es e juristas, membro dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, lideranças indígenas etc.), sobreviventes, familiares de desaparecidos e assassinados; e, ainda, ex-presos políticos vêm travando importantes lutas pela consolidação da memória e verdade históricas no Brasil, como demonstram os casos da luta pelo estabelecimento de um centro de memória no terreno que abrigou o antigo DOI-Codi de São Paulo – modelo repressivo posteriormente exportado para todo o Brasil e atualmente objeto de Ação Civil Pública de autoria do MPSP e com participação do Núcleo da Preservação da Memória Politica de São Paulo, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo e da OAB-SP.

Pode-se mencionar, ainda, o projeto para a futura inauguração do Memorial da Luta Pela Justiça, no local que sediou a antiga auditoria militar na cidade de São Paulo, onde ocorriam julgamentos de presos políticos sem observância ao Estado de Direito, ao devido processo legal e à ampla defesa, coordenado também pelo Núcleo da Preservação da Memória Política e pela OAB-SP, uma vez que realizados já sob a vigência do Ato Institucional n°5 (AI-5).

Mencione-se, ainda, o trabalho de identificação de ossadas de vítimas do regime militar desenvolvido pelas equipes componentes do CAAF-Unifesp, recentemente despejados diante da aquisição dos imóveis da região da Vila Mariana por uma construtora. Acrescente-se que um novo local foi destinado para sediar as equipes.

Também frente de luta pela memória, um grupo de trabalho vem acompanhando a busca para salvar os arquivos da ditadura militar sob guarda do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, atualmente sob risco de destruição após recentes normativas do atual governo.

Assim, brasileiras e brasileiros conscientes de suas responsabilidades históricas, morais e legais vêm empenhando grande esforço na luta pela verdade, memória e justiça.

Que tais lutas sirvam de exemplo a todo o povo brasileiro como homenagem aos que tombaram na luta pelo restabelecimento do regime democrático, que jamais poderão ser esquecidos, e que seu próprio exemplo seja a resposta aos que negam os crimes contra a humanidade cometidos por perpetradores que usurparam suas funções públicas.

Flávio de Leão Bastos Pereira – Pós-doutorado em direitos humanos (Mediterranean International Centre For Human Rights Research – Reggio Calabria, Itália). Doutor e mestre em direito (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Especialista em genocídios e direitos humanos (Zoryan Inst. e Universidade de Toronto). Membro do rol de especialistas da International Nuremberg Principles Academy (Alemanha). Coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. Conselheiro fiscal do Núcleo da Preservação da Memória Política de São Paulo

 

 


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