Prédio da Volkswagen em Wolfsburg, na Alemanha. Foto: Ronny Hartmann/AFP
Financiamento e disponibilização de veículos a operações de repressão, fornecimento aos militares de dossiês sobre funcionários “subversivos”, detenções ilícitas nas dependências da empresa e ocultação de paradeiro de presos políticos a familiares. Foi intensa a colaboração da Volkswagen com a ditadura brasileira de 1964 a 1985, apontou relatório divulgado nesta quarta-feira 31, de autoria do Ministério Público Federal, Ministério Público de São Paulo e Ministério Público do Trabalho (veja na íntegra).
O documento é baseado em anos de pesquisas realizadas pelo cientista político Guaracy Mingardi, da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, e pelo historiador alemão Christopher Kopper. Mingardi foi indicado pelo MP, e Kopper, contratado pela Volkswagen.
O trabalho começou em 2015, quando dez centrais sindicais e demais entidades civis entraram com uma representação no MP contra a Volkswagen, com base em levantamentos da Comissão Nacional da Verdade que indicaram cumplicidade da empresa alemã nas repressões do regime militar. A partir disso, o MP instaurou três inquéritos em que realizou coleta de documentos, análise de provas, reuniões e audiências.
Em 2018, o MP iniciou negociações com a Volkswagen para a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta, documento que firmava um acordo para recompor os danos causados às vítimas da repressão. O tratado foi assinado em setembro de 2020 sob controvérsias, conforme bastidores reportados por CartaCapital. O procedimento livrou a companhia de virar alvo de processos judiciais, mas estabeleceu duas condições: a publicação de uma declaração sobre os fatos na edição de domingo em dois jornais; e o pagamento de 36 milhões de reais para iniciativas de promoção de direitos humanos e para ex-trabalhadores de suas fábricas que foram perseguidos.
Em 14 de março deste ano, a Volkswagen publicou um comunicado em jornais brasileiros, conforme o combinado. No texto, defendeu o Estado Democrático de Direito, disse que “lamenta profundamente” as violações de direitos humanos “ocorridas” naquele período e afirmou que “se solidariza por eventuais episódios” que envolveram seus ex-empregados e seus familiares, “em total desacordo com os valores da empresa”. O relatório do MP, no entanto, mostra que as atividades de repressão foram mais que “eventuais episódios” e estavam em total acordo com a cúpula da Volkswagen.
Fundada em 1937, a Volkswagen chegou ao Brasil em 1955 como a primeira fábrica da marca a produzir fora da Alemanha. Foram necessários, portanto, diversos incentivos financeiros do governo para a companhia permanecer no País. A partir de 1964, a Volkswagen tornou-se líder estrangeira no Brasil, por uma conjuntura econômica muito favorável aos seus negócios durante a ditadura, diz o relatório.
“É nítido que a VW tinha interesse na manutenção do regime de exceção no Brasil, pois a restrição de direitos fundamentais limitava a organização dos trabalhadores e favorecia as margens de lucro e, por outro lado, a sua proximidade com o governo lhe garantia vantagens econômicas e financeiras”, afirma o documento.
Houve um contexto de lealdade da empresa alemã ao governo militar e, nos anos que se seguiram ao golpe de Estado, a VW não mediu esforços para colaborar para que o regime repressor se mantivesse forte, diz o relatório
O controle ideológico de funcionários era uma diretriz política da direção da Volkswagen no Brasil, diz o relatório. Os pesquisadores rejeitam a suposição de que a colaboração da empresa à ditadura tenha sido “eventual” ou “fruto de pressões insuportáveis”. Ao contrário: os fatos reportados deixam claro que a Volkswagen estabeleceu “por disposição própria” uma “intensa relação” com os órgãos de repressão da ditadura, diz o documento.
“A empresa demonstrou vontade de participar do sistema repressivo, sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura”, escrevem os pesquisadores
Carros para a ditadura
Uma das formas de colaboração da Volkswagen foi a doação ou o empréstimo de veículos para a Operação Bandeirantes, projeto piloto de atividades de perseguição, de 1969. Posteriormente, concluem os pesquisadores, os veículos foram incorporados ao Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, o principal órgão de repressão da ditadura.
A Operação Bandeirantes utilizava veículos da Volkswagen e da Ford para levar oficiais e suas equipes às operações. Também transportava detidos ao centro de interrogatório em São Paulo, onde muitos eram torturados.
Uma vez que não há dossiês disponíveis da Operação, diz o pesquisador Christopher Kopper, o apoio material por parte da empresa só poderia ser comprovado através de testemunhos de membros da repressão. O professor cita como exemplo o depoimento do Sargento Marival Chaves Dias do Canto, em 1992, ao Jornal do Brasil, em que afirmou que as montadoras forneciam veículos gratuitos à Operação.
Já Guaracy Mingardi reporta levantamento do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas, que cita nominalmente as empresas Volkswagen e Ford no fornecimento de carros. As duas empresas também foram citadas em depoimento à Comissão Nacional da Verdade por um autor que trabalhou com documentos de militares de alto escalão, diz o pesquisador.
Perseguição a funcionários
Os pesquisadores mostraram que a Volkswagen delatava funcionários “suspeitos de atividades consideradas subversivas”. Havia um departamento de segurança industrial responsável pela vigilância e até mesmo pela prisão dos trabalhadores dentro das fábricas.
Kopper cita o caso do eletricista José Miguel, demitido pela Volkswagen por distribuir um jornal entre funcionários. A empresa não só registrou a atividade como entregou à polícia o nome, fotos e informações sobre Miguel e mais três suspeitos: Genezio Floriano Alves, André Inamorato Pardo e Idalecio Custodio da Silva.
A VW também tinha relatórios de espionagem sobre congressos de trabalhadores, como no caso de uma reunião do Sindicato dos Metalúrgicos, em 1974, afirma Mingardi. Posteriormente, um documento da Aeronáutica esclarece as consequências das atividades sindicais: a demissão de 320 operários e o registro de nomes na polícia.
Os pesquisadores também registram reunião pessoal de mais de 50 encarregados da VW com o Coronel Adhemar Rudge, para tratar sobre movimentos sindicalistas. A empresa inclusive realizava diligências para levantar dados e registrava boletins de ocorrência internos.
Prisões pela polícia chegaram a ocorrer dentro das fábricas, como apontou o diretor do DOPS, Delegado Lucio Vieira, na ocasião de uma “célula” do Partido Comunista formada por trabalhadores de São Bernardo do Campo, em São Paulo. A primeira vítima dessa prática foi Amauri Danhone, em 1972. Em seguida, a polícia prendeu Lúcio Bellentani, Heinrich Plagge e Annemarie Buschel.
Plagge foi preso nas dependências da fábrica depois de ser chamado à gerência do seu departamento pelo seu próprio chefe Ruy Luiz Giometti. Lá, recebeu voz de prisão e foi levado para a sede do DOPS, onde foi vítima de tortura física e moral, tendo sido inclusive ameaçado de ter seus filhos sequestrados, diz o relatório.
“A ação da empresa nesse episódio é de elevada gravidade”, afirma o MP.
“Inicialmente, ela colaborou com as autoridades repressivas para a efetivação da prisão dentro da fábrica. Como não havia mandado judicial ou ordem escrita de autoridade administrativa, essa prisão era manifestamente ilegal. Lembre-se, ademais, que a alta direção da empresa tinha pleno conhecimento de que a entrega do trabalhador aos órgãos de segurança resultaria inelutavelmente em sua submissão à tortura.”
Ocultação de paradeiro
A Volkswagen tentou ocultar o paradeiro de Plagge aos seus familiares, mesmo tendo acompanhado e facilitado a sua prisão, aponta o relatório. A empresa informou à esposa uma “fantasiosa versão” de que o funcionário não voltaria para casa porque tinha viajado a serviço. A mentira foi apresentada pessoalmente pelo chefe do operário, que foi à sua casa e lhe disse para não se preocupar.
Neide Rosa Plagge não confiou na informação e procurou seu marido no DOPS mais de uma vez. Após cinco dias sem notícias, descobriu que ele estava preso. Retomou o contato com o esposo somente quatro meses depois.
No caso de Lúcio Bellentani, a Volkswagen não só facilitou sua prisão dentro da própria fábrica, como permitiu a prática de tortura dentro de suas instalações e ainda se recusou a informar o seu paradeiro à família.
Durante sua prisão por 48 dias, sua esposa compareceu todos os dias à fábrica para obter notícias, mas a Volkswagen só dizia que não tinha conhecimento sobre o que havia acontecido. Ela só soube da prisão no DOPS quando recebeu o formulário do seguro de vida. Em depoimento ao MP, Bellentani afirmou que “várias prisões ocorriam dentro da fábrica”. Pelo menos 13, segundo ele.
O MP considera a postura da empresa como “grave violação aos direitos humanos”, por consistir em “tomar parte em atos executórios de um crime internacional: o desaparecimento forçado de pessoas”.
Outros relatos do MP apontam para a elaboração de “listas negras” para evitar a contratação de funcionários “subversivos”, compartilhadas entre as empresas e com o DOPS. Também havia repressão direta a greves, com interrogatórios e infiltração de seguranças em eventos sindicais.
Justiça segue como responsável por impunidade
Questionado se as punições à Volkswagen foram suficientes, o procurador da República Marlon Alberto Weichert, envolvido no trabalho do MP sobre a Volkswagen, disse a CartaCapital que o reparação obtida foi um “marco histórico”. Isso porque nenhuma pessoa jurídica ou física foi condenada judicialmente por cumplicidade ou participação nas violações aos direitos humanos na ditadura militar, argumenta.
Weichert diz que houve “reconhecimento tácito” da empresa em relação a sua responsabilidade e foi garantida reparação a trabalhadores atingidos. Além disso, os fatos foram investigados e revelados. O acordo também garantirá recursos para novas investigações – outros projetos de pesquisa já estão em andamento. As memórias devem ser reunidas em um espaço na sede da antiga Justiça Militar.
A permissividade com que a Justiça trata crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura contribui para o cenário atual, diz procurador
Segundo Weichert, do ponto de vista civil, não houve penalização o suficiente. Ao mesmo tempo, pondera, é preciso levar em consideração o cenário de “impunidade” promovido pelo Supremo Tribunal Federal e pela Justiça Federal.
Atualmente, afirma, a Justiça brasileira segue permissiva à apologia a crimes contra a humanidade, como no caso da autorização judicial para a celebração da ditadura militar em plena plataforma do governo, de acordo com decisão de março deste ano, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
“A decisão do TRF-5 desrespeita as referidas sentenças da Corte Internacional de Direitos Humanos”, acusa Weichert. “Não tenho dúvidas em afirmar que a Justiça brasileira é um ator interno responsável pelo descumprimento de obrigações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro.”
Fonte Carta Capital